Caixa Preta Soteropolitana

Estamos em crise com a cidade da Bahia!

Converso com as pessoas e todas estão espantadas com o atual estado da cidade. Um simulacro de cidade, parecendo ser governada, parecendo ser habitada, mas que no fundo é uma agregação de coisas e pessoas que só se mantêm e sobrevivem do improviso, do individualismo e do esquecimento (“ah, deixa prá lá!”).

Não se vai mais à praia, já que não temos mais barracas (sim, precisavam ser padronizadas, limpas, controladas, mas devem existir e fazem parte da praia no nordeste. Mas até agora, nada ainda foi feito), os pontos turísticos estão entregues ao tempo e ao abandono. O Pelourinho está nesse estado há anos (pedintes, crack, ladrões…). O que as pessoas com quem eu conversei fazem agora é ficar em casa, visitar amigos, ou ir pateticamente, ao shopping. Levo meu filho nas praças públicas, mas elas são, com algumas exceções, um lixo, literalmente. Triste cidade da Bahia.

É unanime: a cidade está abandonada, sem inteligência política ou mesmo cultural. Uma lástima por todos os lados: transito caótico, instituições falidas, violência bandida e cidadã, deselegância e falta de educação básica, caos na saúde, na limpeza, no transporte público…enfim, tudo o que uma metrópole tem de ruim, sem ter o que elas (as metrópoles) têm de bom: civilidade, equipamentos de qualidade, bons programas culturais, inteligensia, bons e agradáveis lugares para se visitar, baratos e para todos. Nada disso encontramos em Salvador.

Tenho trabalhado com a Teoria Ator-Rede e um dos conceitos fundamentais é o de caixa-preta. Caixa-preta é um “conjunto” tão estável e bem resolvido que nos relacionamos com ele e não prestamos muita atenção. Ele desaparece em um fundo quando tudo está bem. Por exemplo, se o seu computador está ok agora, você nem pensa nele e pode continuar e ler o meu post. Mas se começar a travar, a desligar ou incomodar de alguma outra forma a sua leitura, você começa a pensar nele, a buscar saber de onde vem o defeito, quais seriam as causas. Você vai prestar atenção (ele sai do fundo) e tentar, aos poucos, resolver o problema. A caixa-preta se abre e revela os seus segredos: os problemas técnicos, de projeto, de design, de interface, de regulação, de política, de mão de obra etc.

O objetivo da teoria ator-rede é abrir as caixas-pretas do social por meio de controvérsias. Só assim o social pode aparecer, enquanto rastro das diversas associações entre humanos e não-humanos. Ao cientista social cabe fomentar controvérsias e abrir caixas-pretas. Elas não são apenas “coisas”. Um conceito estabilizado, por exemplo, é uma caixa-preta. Um estereótipo é uma caixa-preta.

Quando não conseguimos abrir a caixa preta, ela é tida como a realidade. A realidade é um enunciado difícil de derrubar, vai dizer Bruno Latour. Precisamos abrir caixas-pretas para ampliar a nossa noção de realidade, a nossa vivência nela, ou simplesmente questionar o que pensamos sobre ela. Assim, se digo que o brasileiro é um “homem cordial” ou que Salvador é uma “cidade da alegria”, para muitos isso tem um efeito de realidade. É inquestionável. Mas, para os chatos e implicantes, deve-se sempre abrir essas caixas-pretas e revelar o que está por trás (ideologicamente, politicamente, socialmente, culturalmente, tecnicamente…). Só assim poderemos, por exemplo, conhecer melhor o que se entende por Brasil ou por Bahia.

Devemos fazer isso em Salvador para compreender melhor os seus problemas. Mas o nosso problema aqui (em Salvador, mas seria também no Brasil?) é que não há mais caixas-pretas. Tudo está aberto, escancarado, revelando de forma tão visível, límpida e até mesmo pornográfica, as entranhas complexas (sociais, econômicas, políticas, técnicas, culturais…) dos seus problemas.

A violência no dia a dia abre a caixa-preta dos que vivem achando que aqui todo mundo é de Oxum, de paz e de alegria, ou dos que vivem em seus carrões blindados e/ou em condomínios de luxo fechados, achando que tudo só acontece lá na periferia. A caixa-preta abriu, revelando que todos estão vulneráveis, que a polícia é incompetente e a política pública de segurança ineficaz. A chuva que cai agora em Salvador, como todas as outras, abre o asfalto, entope os esgotos, desliza as casas nas encostas, apaga os semáforos…As caixas-pretas estão todas abertinhas, e só não vê quem não quer: péssimas condições das obras viárias, da habitação e de sua política, do transporte público, dos equipamentos e da infraestrutura de energia elétrica…

A cada chuva os semáforos se apagam e a caixinha abre: problemas técnicos, de licitação dos equipamentos, de infraestrutura urbana, de suporte e manutenção elétrica, de ineficácia dos orgãos responsáveis, de descaso e desorganização…O metrô é a piada pronta de sempre (lento, lento, como tudo na Bahia, dizem!). Os seus intermináveis 6 km (ah!) não ficam prontos, mas não há segredo. Todos já vimos essa caixa-preta aberta: corrupção, incompetência, descaso com a coisa pública e mais corrupção e rios de dinheiro. As estradas, como a BR 324 agora no trecho SSA-Feira de Santana, por exemplo, foram privatizadas e o pedágio cobra com uma eficiência robótica, mas os buracos e as péssimas condições continuam. Precisa abrir a caixa-preta? O Ferry Boat, desde a sua privatização, insiste em fazer os usuários de bobo e as mazelas são todas conhecidas (incompetência, impunidade, descaso político…).

Precisamos abrir as caixas-pretas? Claro que não. Elas estão escancaradas. Todos sabemos o que ocorre: péssimas licitações, falta de seriedade e de respeito, ganância, descontrole e falta de fiscalização do Estado…Aqui tudo é muito óbvio. As caixas-pretas vão se abrindo sozinhas. Nem precisamos nos esforçar muito para ver as coisas. Está tudo aí, visível: a precariedade da infraestrutura da cidade, a inapetência e incompetência dos gestores, o descaso burro e míope das elites, a ignorância e mal educação das pessoas na rua, o descaso com o outro e com a coisa pública no dia a dia (que é um sintoma do “dane-se, vou cuidar do meu”). Ninguém pode dizer que as caixas-pretas estão fechadas. Sabemos de tudo e conseguimos ver tudo a cada pequeno problema (as caixinhas se abrem todas, facilmente, a cada nova chuva, a cada novo jogo em Pituaçu, a cada festa de largo, ou na casa do vizinho, a cada ida ao Pelourinho para mostrar à tia que chegou de São Paulo…).

E isso é o que mais me assusta. Se abrir caixas-pretas é condição fundamental para alterar a realidade, para questionar os enunciados estabilizados, o que estamos esperando então? Se nada acontece por aqui, quando todas as caixas pretas estão abertas e não temos a desculpa de dizer que não estamos vendo, como poderemos ter esperança em alguma mudança? Um salvador ou um herói aparecerá na próxima eleição? Ora, já abrimos essa caixa-preta também!

Não há mais caixa-preta, ninguém acredita em mais nada, a realidade está em aberto, mas ninguém sabe o que fazer. Tudo está sendo questionado, tudo está escancarado, mas ninguém tem a menor ideia em como construir o presente. A barbárie está batendo nas nossas portas.

Que a esperança, sempre pendurada na caixa de Pandora, nos salve!

PS. Como sempre, falo de onde estou, mas tenho certeza que isso se aplica também a quase todas (se não todas) as capitais do Brasil. Olhe ao redor e tente abrir as suas caixas-pretas, se é que elas já não estão também escancaradas em suas cidades!