Ciências Humanas Salvam (e Matam)

Recentes declarações do ministro da educação no Twitter (17 de março de 2020) desafia um matemático (que ele pensava ser filósofo), que o questionava sobre sua posição contra as universidades e as ciências humanas, perguntando quantas vidas ele vai salvar. Essa visão pode trazer enormes prejuízos ao país. Diferentemente do que pensa o ministro, profissionais da área de humanidades podem salvar, ou matar, até mais do que médicos em centros cirÚrgicos.

Um dia depois do tuite do ministro, a CAPES, agência de fomento do MEC, publicou, sem qualquer consulta ou aviso prévio à comunidade acadêmica, a Portaria 34 que reduz a concessão de bolsas no país. Um dia depois, o MCTIC, em Portaria nº 1.122, prioriza áreas técnicas “… no que se refere a projetos de pesquisa, de desenvolvimento de tecnologias e inovações, para o período 2020 a 2023”. Em ambas decisões políticas, a grande prejudicada é a área de humanas, diminuindo bolsas e praticamente apagando-a do mapa do desenvolvimento de C&T no país.

O governo vem sistematicamente atacando a área de humanidades, apontando a sua desnecessária existência. Essa política (empregada pelo MEC e MCTIC) deve ter por base alicerces que vêm, justamente, da área de humanas, corroborada por estudos sociológicos, filosóficos, antropológicos, políticos. Eles poderiam exibi-los. Ou pode ser uma política baseada apenas em crenças, abdicando desses estudos, tomando decisões baseadas na convicção pessoal, no amor ou no ódio a determinados campos do conhecimento. E se esse for o caso, vamos ter que recorrer urgentemente a estudos da filosofia, da sociologia, do direito, da comunicação, da ciência política…, para explicar essa decisão. Qualquer política séria deve ser feita com base em dados e estudos históricos, antropológicos, sociológicos, geográficos, econômicos, jurídicos, políticos… Não se faz política educacional (ou qualquer outra) sem estudos profundos nas ciências sociais e humanas.

Se sucatearmos as humanidades, quem fará esses estudos? Certamente não serão engenheiros nas fábricas, nem médicos em centros cirÚrgicos. Médicos salvam vidas, engenheiros constroem coisas, mas não existem isolados. Eles fazem parte de coletivos de pessoas, leis, hábitos, artefatos, regras…, que chamamos de sociedade. Os coletivos são produzidos no entrelaçamento entre essas diversas entidades. O nÚmero e a variedade de médicos, engenheiros, laboratórios de pesquisa, físicos…, devem ser pensados por políticas consistentes tendo em vista sua importância no contexto do coletivo em questão. E isso com visão histórica e estratégica. Pensadores do social e gestores pÚblicos não surgem do nada. Sem eles, não podemos pensar o coletivo. Da mesma forma médicos e engenheiros. Políticas pÚblicas produzem consequências materiais, agora e no futuro, e são geradas por decisões que não podem ser tomadas pelo desejo pessoal, amor ou ódio, mas pelo conhecimento sobre as dinâmicas do coletivo (produzido justamente pelas humanidades). Quantos médicos devem ser formados por ano para dar conta da dinâmica social? Quantos hospitais? Como será o acesso a esse bem? Quantos laboratórios de biologia, computação, nanotecnologias? Quantos engenheiros? De que área? Em que lugares? Quanto de vacina precisaremos para combater epidemias? Certamente decisões sobre colocar mais dinheiro em uma ou outra área estratégica faz parte do bom uso do dinheiro pÚblico (isso se faz desde sempre), mas não podem ser tomadas no achismo ou com o fígado! A ausência desses estudos, ou a existência de estudos ruins, mata!

Portanto, sem as ciências humanas e sociais não fazemos política pÚblica de qualidade. Precisamos investir nessa área e formar bons pesquisadores que poderão ajudar a entender fenômenos complexos como epidemias, saÚde pÚblica, cultura e sociabilidade, comunicação interpessoal, comunicação pÚblica, arte, violência, empregabilidade, leis… Ou faremos boas políticas baseadas em bons estudos, ou faremos péssimas políticas baseada apenas em ideologia. E mesmo assim, na base da ideologia que se diz não ideológica, continuamos no campo das humanidades. O problema não é ter uma ideologia, mas debater e construir uma que possa nos ajudar a produzir a emancipação social alicerçada no respeito ao outro, desde a garantia do crescimento da potencialidade individual (seu desejo, suas ambições, seus sonhos – sim, política pÚblica deve pensar no crescimento da pessoa humana), até estratégicas de indução de formação de perfis profissionais que atendam a coletividade. Precisamos, portanto, de cientistas sociais (em sentido amplo), assim como de médicos e engenheiros.

Voltando à pergunta do ministro, o profissional de humanas pode sim salvar mais vidas do que um médico em um centro cirÚrgico, se ele no seu trabalho diário ajuda a formar pessoas sensíveis ao coletivo (e isso mesmo com estudos particulares e especializados). Mas, certamente, ele também poderá matar mais do que um médico, se de suas ideias saírem políticas que visem, por exemplo, reduzir as escolas de medicina, os hospitais e as formas de sua intervenção (privada ou pÚblica), o acesso a serviços de saÚde…, ou ajude a pregar o ódio e o extermínio da diferença entre pessoas. Vejam que é a tomada de posição ideológica nos EUA que produz um sistema de saÚde privado, enfrentando hoje problemas sérios frente à pandemia do coronavírus. Ou o Brasil, que tem o maior sistema pÚblico de assistência do planeta, mas pouco eficiente por causa justamente de políticas pÚblicas que alocam poucos recursos para a dimensão e as características econômicas do seu povo (o Brasil investe 3,8% do PIB, a Alemanha, 9,4%, a Itália 6,7%). Vamos ver o estrangulamento agora com a pandemia em expansão no Brasil. Muitos médicos e profissionais de saÚde estão salvando vidas com enorme sacrifício, que poderia ser minimizado se políticas anteriores e atuais injetassem mais recurso no sistema. Muitos médicos estão morrendo nessa luta. Profissionais de humanas, gestores, políticos, salvam vidas sim, mas também matam!