Cartas, fotos, e-mail, Belina e Sitio

Ontem, um domingo preenchido por um tempo ao mesmo tempo presente, passado e futuro, como ele é. O presente e o futuro estão muito ativos hoje já que vivo o presente em função de uma eminente viagem e de mudanças substanciais de vida num futuro a curto e médio prazos. O passado me pegou de surpresa e ontem, em uma jornada de escape (estrada, carro, família) ao túnel do tempo, revi fotos e cartas de mais de 35 anos, toquei um carro velho com quase 30 anos de existência, e funcionado, e voltei a um sítio que não ia há pelo menos 20 anos. O tempo parado foi redescoberto e voltou com força.

Vi cartas que escrevi com 10 anos de idade, depois com 12, 16, cartas que escrevi para meus pais, com as minhas irmãs, das minha irmãs. Vi também fotos amareladas e impregnadas de traças, amassadas, rasgadas, de pessoas da família. Revi uma Belina 1979 onde comecei a dirigir e sentei na varanda de um sítio que tem hoje quase as mesmas características de 15-20 anos atrás. Sofri positivamente com toda a carga que momentos de transição impõem, onde o tempo se coloca sempre de outra forma, como uma temporalidade que se mede não pelo passar dos segundo, minutos e horas, mas por uma duração (Bachelard) infinita. O tempo não é a permanência do passado já que ele é criativo: cada instante inaugura um outro. Mas é também o passado nessa criação. Ainda estou na duração plena da criação e ainda não saí do sítio, ainda não me libertei daqueles minutos e segundo de preenchimento involuntário.

Essa é a força de uma materialidade que encarna a forma como o passado se constitui. Vi uma letra que não é mais a minha, as rasuras dos erros de português, a retomada de assuntos e pedidos de respostas cuja temporalidade da carta impõe. Vi as ferrugens e o ronco sofrido do motor da Belina 79 que, em outro tempo, me levava à potência do movimento no então motor 1.6. Vi as pequenas transformações da casa desse sítio místico, sempre em construção, onde ninguém podia ir, que chamamos hoje, brincando, de “lost”, mas que se materializou muito bem ontem, embora tivéssemos sempre a dúvida se iríamos ou não sair de lá. Na verdade ainda não saí de lá.

Na volta, pensava sobre a materialidade e o digital. Hoje as cartas são raras e sem elas, podemos, por e-mail, claramente sentir o feeling do passado, reler coisas, rever coisas. Mas algo se perde: a forma da memória do passado impregnado em um suporte. E isso não é pouco. Nas minhas cartas, o papel já rasgado e amarelado suporta minha letra do passado, trêmula, infantil, inclinada, mostrando sem medo as rasuras dos erros de português. A nossa memória digital precisa se lembrar dos erros cometidos e não ser apenas a última versão corrigida, caso contrário não poderemos jamais chamar a memória de um computador de “memória”. As fotos também têm a forma do tempo impregnado no papel amarelo, sujo, rasgado, amassado. Eram cartas e fotos de 35 anos atrás…

Fiquei pensando primeiro no registro, no arquivo: será que conseguiremos guardar e-mails de 35 anos atrás, fotos digitais de 50 anos? Talvez, mas mesmo assim, algo se perde na falta do que se materializa no suporte, algo que o eletrônico não nos mostra: a materialidade do tempo. Se essas cartas e fotos não fossem cartas e fotos, mas e-mails e fotografias digitais, elas ainda teriam o conteúdo do passado explicitado no estilo da época, nas demandas da época, nos assuntos da época, mas, certamente, não teriam mais a minha letra, os meus erros no rabisco, a minha demanda específica por resposta rápida (que no e-mail parece estar implícito).

Podemos dizer o mesmo das fotos. Poderia ver o meu pai jovem na tela do computador, mas não o papel amarelado que traz o passado, que reproduz o tempo não só no conteúdo, mas na “forma – formante” dos sentimentos. Se fosse a foto digital, ou a carta o e-mail, eles estariam para sempre “bons”, “limpos”, “conservados”. Ora, me parece que é justamente a falta de conservação, a sujeira e a imperfeição que traz com força o tempo materializado em toda a sua dimensão. Há assim o conteúdo do passado na materialidade do passado. Escapamos então da contradição do conteúdo passado ligado ao tempo material do presente sempre atual. É como se, de alguma forma , o tempo no digital-eletrônico parasse nessa qualidade da limpeza e da última impressão/visualização. O mesmo posso dizer da Belina 1979: carro amassado, enferrujado, conservado pela insistência em não trocá-la pelo novo, em não atualizá-la em novas máquinas, em não descartá-la. Isso se aplica também a “lost”, o sítio perdido e reencontrado de 20 anos atrás.

Sempre que vamos para frente, para um futuro incerto e aberto, é aí que o passado parece mostrar suas forças, não para congelar a abertura do devir, mas para dar consistência, para dar um lastro onde tudo pode se construir com sentido. É aí que o tempo construído da longa temporalidade e da instantânea duração marca sua força: na materialidade, nesse aparecimento mágico que transborda a experiência!

One Reply to “Cartas, fotos, e-mail, Belina e Sitio”

  1. Estimado André, me parece que lo digital también nos muestra el paso del tiempo. Tengo en un cajón guardados 10 diskettes de 3½ con correspondencia digital intercambiada hace ya 10 años, aunque mi laptop de hoy no tiene disquetera para leerlos. Son un recuerdo que no he querido abrir en mucho tiempo y que seguramente irá a la basura cuando tenga que vaciar ese cajón. También guardo correspondencia que está inaccesible dentro de una IBM Thinkpad que ya no uso porque no anda bien. Pero la conservo porque esas palabras están ahí (no borré los datos, aunque el programa de correo que usaba entonces lo desinstalé). Y aunque me dará trabajo recuperar la correspondencia no me voy a desprender de esa máquina porque la persona con la que intercambiaba esas palabras murió. Los disquetes y la Thinkpad que no funciona están en el mismo cuarto donde conservo aún en una cajita de cartón las cartas de mi adolescencia. Quizá por su función de ser recuerdo, no los actualicé en tecnología con el paso del tiempo, y los recuerdos quedaron ahí casi inaccesibles en formatos en desuso o en hardware descompuesto. Los recuerdos nunca permanecen intactos.

    Saludos,

    Soledad

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