Tudo muda em 2009?

Tudo muda em 2009?



la chose et l’état ne sont que des instantanés artificiellement pris sur la transition; et cette transition, seule naturellement expérimentée, est la durée même. Elle est mémoire, mais non pas mémoire personnelle, extérieure à ce qu’elle retient, distincte d’un passé dont elle assurerait la conservation; c’est une mémoire intérieure au changement lui-même, mémoire qui prolonge l’avant dans l’après et les empêche d’être de purs instantanés apparaissant et disparaissant dans un présent qui renaîtrait sans cesse.
(Bergson, H., Durée et simultanéité. Paris :PUF, 1968)

O ano começa e nada parece mudar. Olhamos para o lado e tudo está lá, a cidade, os prédios, as pessoas, os vizinhos…Ligamos a TV e são os mesmos programas, as mesmas matérias, as mesmas notícias, os mesmos jornalistas, as mesmas guerras… Olhamos para as propagandas políticas nas ruas e vemos sempre os mesmos (políticos) afirmarem (a mesma coisa); que agora vai, que tudo será diferente. No lado pessoal, prometemos novas ações, posturas, decisões todos os anos, para nós e para os outros, mas temos sempre a sensação de estarmos nos repetindo, repetindo, repetindo… Há aqui frustração, mas também um certo conforto. Nada muda realmente e não perdemos nada se, por exemplo, morremos. Tudo continua na infindável espiral do mesmo. 2009 nos apresenta, como 2008, 2007, 2006…sempre o mesmo?

Mas podemos dizer que, contra esse sentimento conformista ou pessimista, a mudança está sempre aí, no fluxo das coisas, nos segundos que passam, no tempo que nos deixa mais velhos a cada dia, nos pequenos passos que conseguimos dar em direção a novas posturas (ilusão?) diante do mundo, de nós mesmos e dos outros. E se não vemos isso nas grandes coisas (dada essa sensação de que tudo se repete), podemos, se estivermos atentos, tocar e sermos tocados pelas pequenas e mínimas manifestações de abertura ao novo que emergem, sabe-se lá como, dos lentos intervalos que se arrastam dentro do tempo descontínuo que passa. Este tenta sempre apagar os intervalos, chamando para si a atenção, colocando o peso nos grandes momentos fragmentados em que baseamos a nossa existência (amanhã, as 18h, segunda-feira…). O tempo descontínuo, ilusório e frustrante (já que quando chega segunda feira, nada mudou, nem às 18h, nem mesmo amanhã), tenta apagar o que pode emergir das pequenas manifestações ínfimas do que dura, nos intervalos quase imperceptíveis, mas determinantes, que agem como pequenas pérolas inovadoras dentro desse tempo devorador de Cronos.

Talvez a fonte do princípio que principia, que quase nunca vemos, esteja não nos grandes intervalos marcantes das promessas que fazemos todos os anos (vou ser mais feliz, vamos viver em paz, vou mudar completamente a minha maneira de comer e de respirar…) mas na duração, nos momentos que se arrastam entre cada segundo e que nos permitem tocar sutilmente, mas substancialmente, o bem e o belo.

Não devemos nos iludir. O que muda não é visível aos grandes olhos equipados com binóculos, computadores ou telescópios, e nem está nos grandes projetos do amanhã (que nunca chegam). O que muda nunca chegará abruptamente pelo tempo do relógio, do calendário ou da agenda, mas na lenta passagem entre os segundos de todos os minutos e entre os minutos de todas as horas, na duração que se arrasta entre um instante e outro, no fluir dos pequenos instantes que crescem e se dissolvem aqui e agora. Só podemos acreditar na mudança de olhos fechados.

Como diz Bergson, a duração é essa multiplicidade de instantes (presa, na era moderna, às grandes marcações temporais que insistimos em usar para organizar a nossa vida em sociedade). A duração não é o “um” ou o “múltiplo”, não é este momento (despedaçado), nem um conjunto destes inúmeros momentos retalhados, separados e “linkados” artificialmente, mas a variação (multiplicidade) do um e do múltiplo. Só aqui teríamos o que Bergson chama de um tempo fundamental, uma sucessão sem separação que pode apontar para um futuro (uma mudança?) construindo-se em um emaranhado de instantes sem a artificial divisibilidade das horas que começam aqui e acabam acolá.

Para Bergson há duas multiplicidades: a “numérica”, que implica o espaço (e o tempo), e a “qualitativa”, que implica a duração (e a extensão). Quanto estamos imersos apenas na dimensão numérica, a sensação é de que nada muda realmente, só, talvez, artificialmente. Quando vivemos a duração percebemos pequenas e marcantes diferenças que parecem mudar (à nossa revelia) cada instante, se apresentando como uma “nova” novidade. Se for assim, não vamos querer mais morrer pois sentimos que perderemos coisas (novas?) a cada instante. 2009 só mudará em relação a 2008 se esquecermos essa marcação numérica e mergulharmos nos instantes infinitos da duração, se nos apegamos a essa sequência de nadas, a esses pequenos momentos “qualitativos” fora do rigor “numérico” das horas e dos grandes projetos.

Se for assim (mas não há garantias!) dissolve-se até a própria ânsia pela mudança já que, diferente do que mostramos no primeiro parágrafo, tudo muda o tempo todo. Um futuro poderia se preparar diluindo-se nas pequenas diferenças entre o passado do presente, o presente do presente e esse agora futuro do presente. Mas o tempo só existe nesse presente: passado, presente e futuro. Nessa duração, de forma sutil e imperceptível (por isso na maioria das vezes temos a impressão de que nada muda) o que muda pode se preparar. Mas não há mesmo nenhuma garantia. É nesse tempo que se deve “matar” (a duração despercebida engolida pelas dimensões descontínuas da existência quotidiana – 13h aula, 17h, ginástica, 20h jantar…) que o devir se prepara (memórias, pensamentos e sentimentos que emergem quando não esperamos, entre um tempo vazio e outro, no ônibus, dormindo, andando…). Só na duração, essa multiplicidade qualitativa, e não no tempo descontínuo, numérico, das temporalidades fragmentadas do quotidiano, podemos perceber o que pode efetivamente fazer uma diferença, mudar.

Aparentemente paradoxal, é na duração que tudo pode mudar. A duração não é a decomposição, mas a possibilidade da emergência do novo (mais uma vez Bergson, e ouça Deleuze explicando abaixo). Mergulhados nesse lento fluir do tempo, a pergunta sobre o que muda em 2009 se dissolve. No fundo, não existe isso que chamamos de “2009” (apenas uma ilusão numérica), mas a elástica qualidade da duração. Se não for assim, se não abandonarmos esse “2009”, viveremos para sempre no repetitivo retorno do mesmo, esperando um amanhã que nunca chega.


Gilles Deleuze falando sobre “La durée”

One Reply to “Tudo muda em 2009?”

  1. É intenso e assusta…não quero me preocupar com o tempo desse jeito, a importância que algumas coisas tem para mim, nem sempre tem o mesmo peso para os outros. Pressentimentos e sensações preenchem tempo e lugares, mesmo imaginários, não acho que gostar disso seja conformismo e pessimismo…é só uma forma de proteção.

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