“Sujet Insecur”
Acabo de assistir a excelente palestra de Mireille Rosello, professora da Universidade de Amsterdã no colóquio sobre “Insécurité linguistique et rencontres barbares”, no Cerium da Université de Montreal. Havia lido e citado um dos seus artigos sobre flânerie no meu “cyberflânerie” há alguns anos atrás.
O tema inicial era sobre cinema e ela mudou na última hora, para minha sorte, para “cultura da insegurança” onde explora a questão do sujeito e das novas tecnologias de vigilância, principalmente as câmeras no espaço público. Vou fazer uma síntese. Em alguns dias a palestra estará disponível em vídeo no site do Cerium (link acima).
A palestra se desenvolveu para sustentar o conceito de “sujet insecur”. Na primeira parte, Rosello discute a noção de “cultura da insegurança”, colocando o acento sobre a idéia de cultura, ou seja, a dimensão onde estamos imersos. Para ela seria hoje impossível nos situarmos fora dela. O sentimento de medo coletivo não é novo – a idade media gera mitos e narrativa sobre o assunto, mas é agora que ele ganha contornos planetários. E um dos sintomas é que essa cultura não indica claramente um culpado. O “modo” de insegurança passa a se uma ontologia, uma forma de ser, de saber e de leitura da contemporaneidade. A questão, para Rosello, é que devemos aceitar fazer parte dessa cultura para transformá-la.
Câmera de Vigilância no Heathrow Airport (“não lugar”), Londres
Na segunda parte ela analisa as atuais e onipresentes câmeras de vigilância no espaço público. Elas fazem parte do discurso sobre a segurança e, ao mesmo tempo, criam a cultura da insegurança. Não há como escapar, e mesmo sistemas de desvio e apropriações desses dispositivos estão enquadrados na mesma dinâmica cultural. Ou seja, elas fazem parte da forma de estar e viver nas sociedades avançadas. Rosello desenvolve então três postulados presentes, segundo ela, em todos os debates sobre a questão: 1. há razões para ter medo; 2. o cidadão está preso entre dois medos: o medo de quem vigiamos (perspectiva que ela chama de “direita”) e de quem nos vigiam (perspectiva de “esquerda”) e; 3. que o sentimento de insegurança é indesejável. Isso leva à criação de uma subjetividade vulnerável que se estabelece pelas duas posições (de esquerda ou de direita). O sujeito quer reagir às câmeras na luta entre, por um lado o direito à privacidade e à liberdade individual, e a segurança social, por outro. Nesse debate ficamos presos em ideologias. Rosello afirma estar cansada desse debate e que vai renunciar a esses argumentos e propor outro ângulo de análise. Para ela, e essa me pareceu a parte mais interessante da conferência, a solução é encarar não as ideologias, mas a materialidade do objeto, a câmera por ela mesma.
Baseada em pesquisas de autores belgas (e outras pesquisas sociais), os resultados mostram que os usuários demonstram que a simples instalação de uma câmera cria medo, vulnerabilidade e insegurança. A câmera estimula uma reação positiva, produzindo a idéia de que há um problema de segurança no lugar e que o medo deve se estabelecer seja no presente (a câmera está ai para proteger de algo), seja na atualização do passado (por não ter tido medo antes), seja no futuro (o problema que virá). A angustia é assim gerada aumentando o medo e a paranóia. A presença da câmera não cria tanto o medo de ser vigiado, segundo pesquisas, mas a sensação de que deve haver medo já que a câmera esta lá.
Rosello vai então propor ver a câmera como um “cidadão incivilizado (sic)”, baseado em autores que escreveram sobre formas de incivilidade na sociedade (maneiras de ocupar o espaço fora das normas, como o graffiti, a violência verbal, o desrespeito ao outro, a falta de educação no dia a dia). Essa falta de civilidade deveria ser reprimida para não gerar mais violência. Embora controversa, ela usa essa tese para propor que as câmeras de vigilância sejam vistas como “cidadãos incivilizados” já que instituem formas de quebrar a “boa educação”, tanto pelo olhar intrusivo, como pela produção de uma sensação de observação e vigilância, causando seja um medo atual, seja o “medo de não ter sentido medo antes”, seja o medo do futuro. De novo, se as câmeras estão aqui é por que há algo a temer. Elas são assim “incivis” por invadir o presente, evocar um passado assustador e produzir a catástrofe futura (sem resolver nada já que apenas filma). As câmeras são consequentemente formas de “pré-mediação” vulgar, apontando para a algo que vai acontecer, já que performativa.
Na terceira e última parte, Rosello, segundo ela mesmo, vai desenvolver uma análise mais “otimista”, afirmando que a insegurança é um sentimento indesejável e temos que fazer tudo para diminuí-lo. Ela retoma o terceiro postulado e afirma que a insegurança é fruto de um contexto cultual especifico e que os eventos de 11/09 só serviram como desculpa pra tentar resolver o problema pelo viés tecnocrático ou ideológico, instituindo diferenças, estigmas (o perigo do “outro”). Há assim alguns que devem ser vigiados e outros não. Para Rosello é fundamental que todos possamos nos colocar como esse “outro” e aceitar o regime de insegurança. A miséria dos “não-lugares” não é, para ela, o excesso de olhar, mas sua falta. Se tenho medo, como humano, posso me colocar no lugar desse outro que me assusta. O problema não é eliminar o outro, mas nos ocuparmos dele, reconhecermos sua a vulnerabilidade que também é a nossa. Para Rosello, a vulnerabilidade produz sociabilidade. O sujeito deve assim encarar as câmeras como um outro que olha, mas que também precisa de ajuda. Ou seja, não se trata tanto de evitar o olhar mas de reforçá-lo para pode ver não tanto as diferenças, mas o que nos torna semelhantes. A insegurança e a vulnerabilidade podem ser formas de aproximação ao outro, formas de reforço social.
Por isso, conclui Rosello, devemos reivindicar um “sujeito inseguro”, vulnerável, e que se aceita assim, fundado na e pela insegurança (já que a segurança total e completa é uma ilusão). Esse “sujeito inseguro” deve ter a capacidade de aceitar a relação de vulnerabilidade e de insegurança e não ficar preso às dicotomias que fazem da primeira um aspecto individual, e da segunda um fato social. O “sujeito inseguro” sabe da ilusão de segurança das câmeras de vigilância, sabe que elas geram o medo e a intolerância e que, ao invés de resolver o problema, elas só o agrava, produzindo mais sentimento de insegurança. Esse “cidadão inseguro” seria melhor adaptado para se locomover nesse regime de visibilidade e denunciaria as tentativas perversas de resolução dessa “insegurança universal”, da qual eles são vítimas.
Nota: Ao leitor sugiro ver a apresentação em vídeo (link acima) já que escrevo no calor da conferência e, com certeza, há imprecisões e traições à autora. Mas fica o post como um estímulo a discussão e ao conhecimento do trabalho de Rosello.
André, seu post coloca uma questão bastante interessante. Em um mundo mediado pela construção do medo (Ballman), aí vai uma provocação: aqui em SP ocorreu, há alguns dias, um crime, no qual uma garota foi atirada de um prédio e o pai e a madrasta são suspeitos do assassinato. Well (Bien), as supostas câmeras de segurança, algo que se tornou obrigatório (apesar de eu ser contra) não gravaram a chegada da família ao apartamento, inocentando-os ou provando sua culpa. As do prédio vizinho ao crime gravaram algumas cenas.
Mais: essa família teve sua vida devassada pela mídia.
Mais ainda: uma filmagem de um hipermercado mostrou-os horas antes do crime. Parecia um comercial de margarina Claybon (não sei se é da sua época). Nem vou falar do Grande irmão, pra não ficar no óbvio. De qualquer forma, estamos o tempo todo sendo seguidos, vigiados. As câmeras nas ruas, como você citou, são a prova disso. Absolutamente questionáveis no quesito segurança. Well, a bola está agora na sua mão.
Abraços digitais,
Mari-Jo Zilveti
http://nomadismocelular.wordpress.com