Saddam, Celular e Enforcamento

Saddam, Celular e Enforcamento.

O vdeo feito por um celular (escondido e ilegal) do enforcamento de Saddam Hussein reflete a pregnncia e a circulao de imagens crescentes na cultura contempornea desde o surgimento da fotografia, do cinema e da televiso. As fotos e os filmes feitos com telefones celulares so quase como os seus similares feitos e popularizados em mquinas portteis, Polaroids, Super8, Cassete e Mini-DVs. Mas aparece, com o digital e a telemtica, uma diferena crucial: a possibilidade de disponibilizao imediata, de produo, circulao e conexo planetria individualizada (blogs, vdeos, fotologs…).

A cmera instantnea fez de cada um um fotgrafo potencial, mas a foto aqui uma mdia de eternizao do momento, da memria, da histria, mesmo que seja o momento, a memria e a histria pessoais. Os vdeos caseiros tinham a mesma funo, marcar os acontecimentos familiares, os momento ritualsticos (casamento, festas, nascimento, etc.), ou mesmo, por acaso, fatos histricos como o testemunho do assassinato do presidente Kennedy na dcada de 1960. Fotos e vdeos eram fundamentalmente instrumentos mnemnicos de registro de momentos solenes e de reforo de laos familiares (Barthes e Bourdieu trataram dessa questo em textos clssicos sobre a fotografia).

A fotos e os vdeos feitos com dispositivos mveis (celulares, palms, cmeras digitais, mas principalmente os celulares) tm a potncia do registro (vimos isso nos ataques ao WTC, nas bombas em Madri e Londres, na Tsunami na sia, na guerrilha urbana em Paris, e agora com o enforcamento de Saddam), mas o que os diferenciam a produo em massa individualizada, a circulao imediata, a conexo planetria, fazendo de todos ns, queiramos ou no, testemunhos virtuais, partcipes da experincia, de tudo e de qualquer coisa.

Pessoas ao redor do mundo tiram fotos e fazem vdeos com celulares, editando, apagando (no mais o momento solene, mas qualquer momento, sendo visualizado de forma instantnea e podendo tambm ser editado, apagado, instantaneamente) e circulando imagens entre suas “comunidades individuais” (amigos prximos e distantes), como forma de reforo social e de comunicao. A foto e o vdeo ganham (talvez de forma mais radical) o status de media, e no apenas de suporte para um registro. O que importa no a “histria”, mas o momento presente vivido coletivamente, a comunicao pelas imagens. No importa a pose histrica, mas a conexo, a sociabilidade reforada por essa lembrana do outro na circulao das imagens (veja o que estamos fazendo, lembramos de voc, me mostre o que voc est fazendo…). A desolenizao traz a banalidade como socialidade.

O vdeo de Saddam nos fez testemunhas da sentena (e dos insultos, e das provocaes). A sensao de algo j quotidiano: captar, circular, conectar atravs das imagens. A imagem do enforcamento nos causa assim estranhamento (por ser um enforcamento – algo anacrnico, por ser Saddam e por ser um evento de dimenses polticas planetrias) mas, ao mesmo tempo, ela facilmente absorvida j que nos traz a sensao do banal.

Antes da execuo eu perguntava a um amigo se iramos ver o enforcamento no YouTube (o YouTube aqui genrico, significando qualquer sistema de circulao de vdeo). Ele me disse: “no vo deixar no”. Eu respondi: “ah, vai ter algum com um celular escondido”. Hoje tem sempre um celular escondido, tem sempre uma imagem circulando. E nessa circulao nos tornamos testemunhos virtuais para alm da nossa vontade…

O vdeo feito por um celular escondido do enforcamento de Saddam Hussein um marco, e nos coloca diante de questes que vo desde a discusso sobre o conflito no Oriente Mdio e seus impactos (o vdeo trouxe questes sobre a justia do julgamento, sobre o papel americano na questo, sobre a barbrie dos insultos na hora da morte, sobre a dignidade da pessoa, mesmo sendo de um Saddam Hussein!), passando pela vigilncia e controle a que estamos sujeitos hoje (poderia ser filmado? poderiam ser distribudas as imagens de um enforcamento?, ou da morte de algum?), at as novas formas de sociabilidade emergentes com as tecnologias mveis (produo, circulao e conexo) na cibercultura.

Comentrios?

4 Replies to “Saddam, Celular e Enforcamento”

  1. Por coincidncia, no texto que estou tentando escrever para a comps busco fazer relaes entre as produes descentralizadas e individuais disponibilizadas em sites como you tube, seguindo a teoria do castells da Mass Self Communication, com as idias de Gilmor e o princpio da liberao do plo de emisso de Lemos.
    Percebo que existe uma inverso no processo de produo quando nos deparamos com os vdeos de saddam, de cicarelli e outros. O plo emissor da notcia ou do fato no tem mais um ponto de partida ou um ponto central institucionalizado pela mdia de massa, cabendo a ela decidir o que ou no publicado, e da ser discutido nas rodas de leitores.
    A inverso est no momento em que as rodas de discusso se tornam os plos de emisso, com a diferena que essas rodas agora acontecem em um outro ambiente, o ciberespao. A verdade que alm da cmera do celular na execuo de Saddam existia uma cmera oficial do governo que legitimizava o enforcamento. S que essas imagens ficariam nas mos de um poder que poderia ou no liberar parte das imagens para a mdia de massa divulgar. como se as imagens do celular desse um "drible" na mdia centralizadora (no estou aqui querendo gerar a valorao de uma ou outra).
    Bom, s um comentrio. Tentarei me aprofundar mais no texto.

  2. O Youtube ainda tenta fazer uma filtragem do que deve ser exibido ou no, mas no acredito que sistema nenhum no mundo vai ter a capacidade de avaliar friamente tudo o que produzido e disponibilizado… Se no for pelo Youtube, vai ser por outro. Isso sempre me faz lembrar dos vdeos da Cicarelli sendo retirados do Youtube, mas tambm de um amigo meu que no botou TAG nenhuma com referncia a ela, e fazendo tudo circular numa boa.

    Obviamente, outros amigos j at perderam suas contas assim.

    Pena que o celular no era to popular – nem tinha tantos recursos – na poca "de ouro" de Saddam. Quantas coisas perdidas na histria…

  3. No sei at que ponto a facilidade de captao e circulao de imagens no acabam gerando uma supervalorizao destas…

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