QUEM E COMO SE FAZ UMA TESE?

Talvez agora me faça entender, quando insisto há anos, sobre a necessidade de fazer dos laboratórios e grupos de pesquisa um laboratório de escrita. O texto é o nosso produto principal. Afirmo que os nossos mestrandos e doutorandos precisam praticar a escrita, aprimorar o texto, dado que produzimos um texto específico, o texto acadêmico.

Tento criar condições e incentivos para que eles desenvolvam esta habilidade, e de diferentes formas: artigos acadêmicos, posts autorais nos blogs, ensaios sobre os temas de suas pesquisa, resenhas críticas dos livros e artigos lidos, fichas de leitura… No nosso Lab404 temos um blog no qual todos podem e deveriam escrever, temos discussão de fichas de leitura com textos escritos produzidos pelos pesquisadores do Lab404 a partir das leituras diversas, incentivo a produção de artigos coletivos (e temos agora um selo de livros eletrônicos para estimular a produção textual). Ele é um laboratório justamente por dar ênfase aos nossos produtos (blogs, textos, aplicativos, e-book, podcasts….). Estou tentando fazer isso até na graduação quando, neste semestre em curso, mudei as aulas magistrais para uma adaptação do que se tem chamado de “classe invertida” fazendo, ou tentando fazer, com que os alunos escrevam no horário de aula suas reflexões sobre os temas da semana (ver a experiência em curso).

Mas tem sido muito, muito difícil. Parece que todos ainda vivem no mito romântico do pesquisador isolado, sozinho no seu quartinho em frente ao computador esperando uma inspiração genial vinda dos céus! Ir a faculdade, ou ao laboratório, é apenas para discutir teorias e nunca para escrever. Ou para seguir as disciplinas que não praticam a escrita e exigem, no final, um texto! A escrita continua sendo uma atividade isolada, retirada do nada da experiência. Ou está ela presa apenas aos ritos das disciplinas, que parecem sobrecarregar os jovens pesquisadores, ou à necessidade de produção em revistas acadêmicas exigida pelas agências de fomento e programas de pós sem que os estudantes sejam treinados nesta prática. E eles (nós) fazem(os) na marra, já que nunca tem(os) este espaço para trabalhar a habilidade textual.

Todos sabem a importância dos grupos de pesquisa, mas precisamos ampliá-los para além das discussões teóricas. No meu programa de pós defendo a ideia de que as reuniões nos grupos de pesquisa devam ser aceitas como uma disciplina (ou “oficina”?), com certeza a mais importante de todas as nossas atividades. Estas reuniões podem consumir mais de 4 horas por semana. Conseguimos fazer isso para contar horas para os professores, mas os créditos gerados para os alunos não podem substituir os créditos exigidos obrigatoriamente nas disciplinas “oficiais” do programa ou, se valer, precisaríamos aumentar a creditação. Ora, se prevalecer esta opinião, ela será aceita como uma disciplina de segunda categoria. E a universidade (a UFBA) insiste em aumentar a creditarão em sala de aula, indo na contramão de tendências internacionais mais interessantes.

Sabemos que a tese, no fundo, é feita mesmo nos grupos e labs a partir das discussões, e depois no penível e isolado trabalho do mestrando ou doutorando. Não acho que este isolamento seja prescindível. Escrever é sempre uma atividade solitária. Não estou dizendo que devemos acabar com isto. Apenas afirmo que na orientação e trabalho nos labs e nos grupos de pesquisa devamos estimular os jovens pesquisadores a exercitarem a escrita. É este o nosso produto principal, o texto. É esta a nossa prática: escrever (e também falar). Como faremos isso sem um maior exercício (coletivizado) da escrita, sem introduzir esta dinâmica nas nossas práticas de orientação? Claro, a instituição universitária impõe este exercício, já que mede a qualidade de um pesquisador pela repercussão da sua produção textual. Mas aqui ela é uma atividade fim, adquirida pela mágica do isolamento e de genialidade individual (supostamente, pois se retirarmos as redes as quais o pesquisador está vinculado, este desaparecerá). O que não aparece aqui é a valorização desta atividade como atividade meio, como treinamento em um ambiente colaborativo de aprendizagem (que são os grupos e laboratórios, certo?).

Impera o mito do autor, individual, que vai ao grupo discutir teorias, reforçar estereótipos e depois produzir, sozinho, seu texto “original”. Ora é de mito que estamos tratando, efetivamente. Só uma idealização gigantesca do processo de produção textual, pensado como “transporte sem transformação”, sem pagar o preço das diversas mediações (a ação do demônio “Duplo Clique”, como mostra Latour no “Enquete sur les Modes D’existence”) pode nos fazer acreditar que um padeiro vai fazer pão sem pegar na massa, e que, sozinho, de uma dia para o outro, o pão sairá. Seria bom descer do Olimpo.

Acabo de ler um texto do Bruno Latour que motivou este post. Latour explica com mais clareza o que estou tentando fazer como “orientador”. Vejam que o termo em português é muito bom: não é o “diretor de tese” francês, nem ou “pai/mãe da tese”, dos alemães. O termo em português parece bem adequado: “orientador”! É o que deveríamos ser e fazer: orientar pelos caminhos amplos das teorias e da escrita, sem esquecer esta última, não para escrever como o orientador, mas para além dele!

Os extratos abaixo são do posfácio escrito por Latour para um livro (L’Effet Latour. Ses modes d’existence dans les travaux doctoraux),organizado por doutorandos que utilizam as teorias latourianas em suas pesquisas. Leiam o texto na íntegra. As citações abaixo são para reforçar o que disse acima. Vejam:

“Ce travail collectif ne peut se faire qu’à la condition de ne pas être seul dans sa chambre de bonne à regarder son écran en espérant que les données vont finir par rentrer dans le « cadre théorique » du labo auquel on appartient. Il faut jouer ensemble dans cette espèce de « tas de sable » qu’est l’atelier d’écriture de thèses en patouillant ensemble les chapitres, plans, paragraphes et données brutes des uns et des autres. Seul moyen d’échapper à la maladie du doctorant : se retrouver seul devant ses données en voyant son directeur une fois de temps en temps et en s’imaginant qu’il s’agit là d’un monde unique et entier.

“J’ai toujours préféré que le doctorant dise « j’ai fait ma thèse dans le labo d’Untel ». Car c’est toujours en effet, quelle que soit la qualité du directeur, un labo (ou un groupe de recherche) qui assure au doctorant la meilleure matrice pour se développer intellectuellement et apprendre des autres doctorants de sa « classe d’âge » les « ficelles du métier « (pour parler comme Howie Becker).”

“Malheureusement, la formation en sciences sociales et humaines est en ce point totalement déficiente. Alors que la thèse (ou les articles faisant office de thèse) sont entièrement des écrits, je n’ai jamais vu de doctorants qui aient bénéficier d’un atelier d’écriture de thèses. Quand je dis « écriture » je ne dis pas « discuter » de ce qu’il faudrait écrire si l’on avait lu davantage, pensé davantage, ou passé quelques années de plus sur le terrain ; je ne parle pas non plus des « débats d’idées » à propos des « positions théoriques » des uns ou des autres ; et, encore moins, de cette horrible chose, malheureusement toujours enseignée, qu’on appelle « méthodologie et épistémologie des sciences sociales »… Non, je parle de l’équivalent de la préparation d’une pâte à tarte ou du démontage d’un moteur faite par l’apprenti avec le maître dans son dos.”

“Ce travail collectif ne peut se faire qu’à la condition de ne pas être seul dans sa chambre de bonne à regarder son écran en espérant que les données vont finir par rentrer dans le « cadre théorique » du labo auquel on appartient. Il faut jouer ensemble dans cette espèce de « tas de sable » qu’est l’atelier d’écriture de thèses en patouillant ensemble les chapitres, plans, paragraphes et données brutes des uns et des autres. Seul moyen d’échapper à la maladie du doctorant : se retrouver seul devant ses données en voyant son directeur une fois de temps en temps et en s’imaginant qu’il s’agit là d’un monde unique et entier.”

“C’est dans le feu du travail collectif sur le texte (et non pas sur les idées du texte) que l’auteur s’aperçoit peu à peu de cette immense distance et que le texte peut être ensuite corrigé, réécrit, rattrapé. Ecrire c’est, par définition, réécrire. Mais on ne peut réécrire si l’on est seul devant son texte et seul avec son sujet ou seul avec son directeur. Pour parvenir à la véritable écriture de thèse, c’est-à-dire trouver un dispositif textuel qui soit en adéquation exacte et unique avec son sujet, il faut un grand temps de réécriture.”

Escrevam, e coletivamente, nos Labs, pelos Labs, com os Labs.

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