Postei aqui, no começo do ano, uma discussão sobre como nós, acadêmicos, devemos enfrentar o problema de citar usando um Kindle, ou qualquer outro leitor eletrônico. Esse é um problema que reflete as novas características do digital.
O problema parece estar parcialmente resolvido: o Kindle agora oferece o número da página da versão impressa que dá “origem” ao livro eletrônico. A solução é conservadora: manter a amarração do texto com a sua versão impressa. Isso resolve o nosso problema, mas não ousa como solução já que tende a apagar as diferenças das publicações digitais em relação às impressas. O Kindle replica a versão impressa como se essa fosse a “original”.
No entanto, a questão é mais profunda, pois remete à indexação de obras eletrônicas, que devem, acho, aos poucos abandonar essa noção anacrônica de páginas dos impressos e se libertar da amarra de um suposto original mais valorizado do que a sua cópia eletrônica. Não será isso, no fundo, o que ainda está pairando na discussão sobre os livros em papel e os digitais e na resistência em relação a esses últimos? Não seria mesmo a nostalgia do papel que seria o original que fixa para sempre a informação em suas páginas? Não se vê aqui como todo original só existe nas reproduções e que mesmo o impresso já é uma reprodução, um ponto na trajetória de uma “originalidade”. É a noção mesmo de original que parece estranha nesse debate.
Aconselho a leitura do recente texto “The Migration of the Aura, or how to explore the original through its fac similes” de Bruno Latour e Adam Lowe, sobre essa questão. No artigo, o autor afirma que o que interessa é a trajetória da aura do original e não a discussão se o que se tem em mãos é um original ou uma cópia (vista como degradação da aura, como sustentado por Benjamin no seu famoso texto, por exemplo). Benjamin estava errado. Um texto de Latour e Hennion, publicado nos Cahiers de Médiologie já mostrava esse erro, afirmando que a aura aumenta com a reprodução técnica. No fundo pouco importa, se a cópia for de qualidade e possa continuar a trajetória de um original. Toda produção (não só da obra de arte) deve ser vista como “trajetória”, o original como a “origem” e a cópia, como aquilo que advém do que é “copioso”, farto. Essa discussão poderia também ser muito útil ao debate sobre direitos autorais no Brasil e iluminar o atual Ministério da Cultura.
Vejam o que diz Latour em algumas partes do seu texto (sem referência à localização das passagens já que o PDF que utilizei não oferece essa informação). Recomendo a leitura completa do artigo.
A work of art —no matter of which material it is made — has a trajectory or, to use another expression popularized by anthropologists, a career. What we want to do in this paper is to specify the trajectory or career of a work of art and to move from one question that we find moot (“Is it an original or merely a copy?”) to another one that we take to be decisive, especially at the time of digital reproduction: “Is it well or badly reproduced?” The reason why we find this second question so important is because the quality, conservation, continuation, sustenance and appropriation of the original depends entirely on the distinction between good and bad reproduction. We want to argue that a badly reproduced original risks disappearing while a well accounted for original may continue to enhance its originality and to trigger new copies.
Actually, this connection between the idea of copies and that of the original should come as no surprise, since for a work of art to be original means nothing but to be the origin of a long lineage. Something which has no progeny, no reproduction, and no inheritors is not called original but rather sterile or barren.
To the question: “Is this isolated piece an original or a facsimile?,” it might be more interesting to ask: “Is this segment in the trajectory of the work of art barren or fertile?”.
(…) if we stop rehearsing, if we stop reproducing, the very existence of the original is at stake. It might stop having abundant copies and slowly disappear.”
(…) since it has never been copiously copied, that is, constantly reinterpreted and recast. The work has lost its aura for good.
There is no better proof that the ability of the aura to be retrieved from the flow of copies (or remain stuck in one segment of the trajectory) crucially depends on the heterogeneity of the techniques used in the successive segments, than to consider what happens to THE ORIGINAL book now that we are all sitting inside that worldwide cut and paste scriptorium called the Web. Because there is no longer any huge difference between the techniques used for each successive reinstantiation of the originals of some segment of a hypertext, we accept quite easily that no great distinction can be made between one version, judged before as “the only original”, and later versions, which would be said to be “mere copies”.
In effect, Benjamin confused the notion of “mechanical reproduction” with the inequality in the techniques employed along a trajectory. No matter how mechanical a reproduction is, once there is no huge gap in the process of production between version n and version n+n, the clearcut distinction between the original and its reproduction becomes less crucial—and the aura begins to hesitate and is uncertain where it should land.
(…) painting has always to be reproduced, that is, it is always a re- production of itself even when it appears to stay exactly the same in the same place. Or, rather, no painting remains the same in the same place without some reproduction. For paintings, too, existence precedes essence.
For a work of art to survive, it requires an ecology just as complex as one needed to maintain the natural character of a natural park.4 If the necessity of reproduction is accepted, then we might be able to convince the reader that the really interesting question is not so much to differentiate the original from the facsimiles, but to be able to tell apart the good reproduction from the bad one.
What the curators did was to confuse the obvious general feature of all works of art —to survive they have to be somehow reproduced— with the narrow notion of reproduction provided by photographic posters while ignoring many other ways for a painting to be reproduced.
In other words, originality does not come to a work of art in bulk; it is rather made of different components, each of which can be inter-related to produce a complex whole. New processes of reproduction allow us to see these elements and their inter-relationship in new ways.
Once again, digital techniques allow us to distinguish features that are being regrouped much too quickly into the generic term “reproduction”. As we have seen, exactly the same intellectual oversimplifications and category mistakes happened when Benjamin wrote about “mechanical reproduction”. Surely the issue is about accuracy, understanding and respect – the absence of which results in “slavish” replication. The same digital techniques may be used either slavishly or originally.
As citações acima vêm de uma reprodução em PDF, que é na realidade o original (o que origina a trajetória desse texto já que esse está sendo publicado em um livro). O livro já está publicado. Vejam o seu rastro escrito abaixo do título do artigo em PDF:
“A chapter prepared by Bruno Latour & Adam Lowe for Thomas Bartscherer (editor) Switching Codes, University of Chicago Press (2010) . Final version –after editing by CUP”
Mas qual é o original que principiou essa reprodução? Provavelmente o texto escrito em um processador de texto pelo autor. Mas a partir daí ele não parou de se reproduzir. E isso é bom, pois significa que fará uma linhagem, que se manterá como “aura” original em novas reproduções, citações, referências. Muitos não se reproduzem e morrem nos HDs dos escritores (um texto não aprovado para publicação, por exemplo, é um original que não se reproduz e que morre enquanto original, como o que cria uma linhagem). Como citar esse texto? Em que reprodução que vai mantendo a trajetória do original? Em páginas, locations ou sem nenhuma localização como no PDF que origina aqui as minhas reproduções?
O que importa, efetivamente, não é tanto a discussão sobre a origem, mas saber sobre os tipos de reproduções e sobre as possibilidades de continuar a reproduzir o texto. E como localizar a citação? Bom, tudo vai depender da trajetória de suas reproduções. Não se trata tanto de voltar a uma página de uma reprodução impressa que congelaria o tempo e tomaria para si o lugar de ponto central e original de ancoragem principal das citações, como fez o Kindle para resolver o problema. Localizar a citação é sempre localizá-la em uma reprodução, em um ponto da trajetória de uma originalidade. Como mostra Latour no seu texto, o original passa sempre por reproduções, resolvidas provisoriamente na edição do impresso, no caso dos livros. Haverá sempre novas reproduções do original e novas localizações, seja das páginas dos impressos ou dos “locations” do Kindle. No caso do impresso, a localização pelo número da página (essa ilusão de fixação) é sempre provisória pois das duas uma: ou a obra continuará (e será reproduzida, desarrumando as informações, mudando as páginas), ou será esquecida, ficará sem linhagem e trajetória, e desaparecerá. Por isso que a solução da página também coloca em causa a migração da “aura” do original e é tão problemática quanto a “location” do Kindle.
Aprendemos a pensar na fixação da página impressa como “confiável” e “original”, de onde emana a “aura”, e a pensar na reprodução (qualquer uma, mas a digital mais recentemente) como inferior, como denegrindo a imagem do original, como a destruição dessa aura pela reprodutibilidade (a opção Benjamin). Em uma citação acadêmica temos sempre que informar o número da página (para que outros sirvam de testemunha da veracidade da minha reprodução, e para que possam ver o contexto de onde foi retirada), mas isso não basta. Como é sempre uma reprodução de uma trajetória de origem, temos que indexar essa cópia. Temos que informar também a edição, a cidade e o ano. Assim, o original (onde está ele mesmo?) só existe na reprodução que efetua a trajetória da migração, perpetuando a sua existência. E isso muda o tempo todo.
No fundo, acho que seria mais interessante falar de uma localização fluida e que depende do leitor (aquele que lê e o dispositivo utilizado) do que forçar os leitores a se fixarem na estrutura das páginas de uma edição impressa (também fluida de fato, mas com aparência de estática), como quer o Kindle, como se essa fosse original, verdadeira, perene. Tudo ficou mais fácil para nosso trabalho na academia com o Kindle indexando as páginas do impresso como um original, mas perdemos a oportunidade de avaliar mais seriamente, e com impactos mais concretos (o que teríamos que fazer para repensar essa prática de citações), sobre a mobilidade dos textos, dos originais e das cópias.