Chatroulette

No domingo é sempre bom começar ouvindo Mozart!

“La place qui est faite à la connaissance de soi-même devient plus importante : la tâche de s’éprouver, de s’examiner, de se contrôler dans une série d’exercices bien définis place la question de la vérité – de la vérité de ce que l’on est et de ce qu’on est capable de faire – au cœur de la constitution du sujet moral”, Foucault, Histoire de la sexualité, Le Souci de soi (1984).

Ontem estava na praia e conversava com um amiga epidemiologista sobre uma pesquisa que ela está desenvolvendo no Brasil (Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto na UFBA) para aviliar 15 mil pessoas no período de 20 a 30 anos. Ela me dizia que os voluntários têm que ficar 4 horas fazendo exames, regularmente, e que em lugares como o Rio as pessoas não conseguiam ficar esse tempo e tinham que parar para “tomar um café e fumar um cigarro”. Eu disse que entendia, já que, mesmo sendo voluntários, não é muito relaxante ter “o capô do corpo aberto” como falou um dos voluntários. Ser avaliado por médicos com exames é sempre algo que preocupa e incomoda. Assim, entendia que as pessoas quisessem um “break”. Ela me disse então que esse era um comportamento tipicamente masculino (medo de exames, breaks, etc) já que as mulheres aceitavam mais serem escaneadas pela ratio médica. Concordei mas não podia deixar de pensar em Foucault, no “souci de soi” e em como hoje a medicina toma o corpo como um terreno de explorações visando o “bem” desse sujeito que não é mais dono de si e sim refém desse novo (moderno) discurso médico-científico. Me veio à mente também o Foucault de “as palavras e as coisas” (a epísteme, a mudança dos discursos e sua relação com a “verdade” ao longo do tempo, etc).


Photo, @NYT

Bom, retomo essa papo praieiro pois acabo de conhecer, via artigo do NYT, “The Surreal World of Chatroulette“, o sistema de chat aleatório por webcam, Chatroulette e acho que ele tem tudo a ver com esse “souci de soi”, com essa autoexposição de si nas novas formas de sociabilidade e na elaboração de um novo discurso sobre o “sujeito”. Assim como blogs, Facebook, Orkut ou Twitter, o Chatroulette é mais um instrumento de mídia social online que coloca em evidência o jogo contemporâneo do mostrar e esconder, do privado e público, do anonimato e da exposição. Aqui voltamos a Foucault no questionamento do discurso moderno e sua epísteme que institui esse sujeito que se mostra agora mediado por artefatos comunicacionais, interagindo à distância e fora de todo contexto no qual ele está inserido. Voltamos à questão do “souci de soi”, do cuidado e das formas de apresentação de si contemporâneos.

Como os diversos fenômenos da cibercultura, Chatroullete foi criado por um jovem de 17 anos, russo, Andrey Ternovskiy. Relações mediadas por webcams não são novas. A novidade do Chatroulette é que as relações são agora instituídas no jogo do contato aleatório, instantâneo e inesperado, como em uma roleta russa, mas sem a dimensão trágica dessa. O sistema te leva (como um teletransporte) a encontrar pessoas via webcam, e não precisa de instalação de softwares, já que funciona diretamente via web. O usuário entra no sistema e clica “play” (interessante aqui como o início da ação é logo etiquetado como “jogar”, ou “brincar”). Ao apertar “play”, o usuário é conectado aleatoriamente à uma webcam e a sua própria é acionada. Como afirma a matéria do NYT, “It’s very strange, and not just because you are parachuting into someone else’s life (and they yours), a kind of invited crasher.” Diferente do Facebook, Twitter ou Orkut, não é preciso revelar a identidade ou fazer qualquer registro, embora você apareça “em carne e osso”.

“Brinquei” um pouco no sistema e passei por várias pessoas que rapidamente apertavam em “next” (ou seja, você vai para uma outra webcam). Em um primeiro momento foi difícil falar com alguém. Depois, conversei rapidamente com um oriental que acenou para o Bernardo. Perguntei de onde ele era mas ele passou para o “next”. O erotismo está bem presente. Vi câmeras como pessoas segurando cartazes pedindo para mostrar partes íntimas, algumas insinuando masturbação e um casal se pegando…Mas encontrei pessoas que ficavam me olhando (e eu para elas – muito estranho), sem dizer nada. É uma relação face a face onde o que se apresenta tem um efeito imediato. Como no “face a face” não mediado no qual ao vermos alguém, ou se vai com a cara ou levamos o olhar para outro lugar, desviando-o. Aqui clica-se em “next”. Fui com a cara, fico. Não fui (adolescentes rindo olhando pra câmera, por exemplo), clico logo em “next”. Interagi com uma pessoa que estava ouvindo música bem alta. Do meu lado comecei a balançar a cabeça e ela também. Depois de alguns segundos estávamos “dançando juntos”. Depois me deparei com essa webcam (imagem abaixo) onde não havia ninguém (visível). Era como se estivesse caindo pingos luminosos sobre essa silueta. Efeito na imagem. Bom, coloquei a minha câmera para a janela (um céu azul belíssimo lá fora) e as duas webcams ficaram assim por algum tempo até que eu decidir ir embora. “Next”.

Interessante o clique rápido, interessante a interação desconfiada, interessante o tempo morto, sem nada acontecer, apenas olhares ou câmeras ligadas uma na outra. Interessante a espera para ver o que vai aparecer do outro lado da tela…

Como aponta a matéria do NYT, não será surpresa se o sistema acabar em meses, ou virar apenas mais um lugar para a pornografia e idiotices juvenis. No entanto, achei muito interessante o sistema aleatório de chats pelas webcams, a sensação de teletransporte para outros lugares do mundo através das câmeras de outras pessoas, a sensação de estar entrando em uma zona privada de forma anônima e sem complicações técnicas. Fiquei pensando em futuras apropriações do sistema que irão propor ações criativas e políticas para além do simples chat com estranhos: ações políticas, ativismo cultural, jogos, arte eletrônica… Mais uma vez, no amplo repertório da cibercultura, uma simples ideia pode criar um amplo efeito social. Em era do individualismo em crise, essas relações sociais banais implicam efetivamente em contato social, em construção de uma imagem de si (como a pessoa aparece ou não na webcam, como a câmera do computador é posicionada, etc.), na busca ao outro (e a si mesmo, no fundo), na saída de si nessa tactilidade social mesmo sob o signo do jogo ou da brincadeira. Um fenômeno que se junta a outros para pensar a subjetividade atual.

Como escrevi em um dos primeiros artigos sobre webcam e blogs no Brasil, “A Arte da Vida. Diários Pessoais e Webcams na Internet” (Cultura da Rede. Revista Comunicação e Linguagem, Lisboa, 2002):

“As tecnologias digitais têm impacto na estrutura cognitiva do indivíduo, como todas as tecnologias de comunicação (…) podemos afirmar que os indivíduos constroem suas realidades sociais, onde cada pessoa percebe, interpreta e define informação, objetos ou outros indivíduos a partir de sua própria visão da realidade. (…) O “Other” “é a entidade que o indivíduo constrói que leva em conta as atitudes gerais dos grupos sociais e da sociedade” (Mead, 1934:155). Através deste outro genérico, um indivíduo pode construir expectativas sobre o que os indivíduos irão pensar das várias e diversas situações sociais. É o que caracteriza a prática das webcams e dos ciberdiários. Os fenômenos das webcams e dos diários pessoais podem ser considerados com formas de escrita de si, já que tanto na construção da imagem através de câmeras pessoais, como nos fenômenos de publicização de diários íntimos, o que está em jogo são formas de apresentação do eu no ciberpespaço.(…)”

Affaire à suivre!