Bruno Latour (1947-2022)

RIP Bruno Latour

Tive contato com a obra de Latour quando do lançamento do “Jamais Fomos Modernos”, em Paris, em 1991, quando eu estava iniciando o meu doutorado em sociologia na França sobre cultura digital. Não tive condições de compreender a dimensão total daquela posição naquele momento, embora tivesse me aproximado, sem saber, da sua análise híbrida das redes sociotécnicas. Analisei a cibercultura justamente por essa dimensão, como um fenômeno emergente, um fato social total de entrelaçamento entre objetos e sujeitos, entre o que chamei de sociabilidade e tecnicidades. Neste exato momento, meu livro (Cibercultura), fruto desse doutoramento, faz 20 anos de publicado (Sulina) e em breve será relançado com uma nova introdução apontando justamente esses vínculos.

O tempo passou e só voltei a me deparar com a obra de Latour em 2010, mudando a minha visão da sociedade e do mundo. Sua obra me colocou em uma virada onto-epistêmica que está materializada na minha produção desde então, sendo que esse reposicionamento adquiri sua dimensão mais forte nos Últimos anos, quando me dedico ao estudo das novas materialidades e sociologias pragmáticas ligadas aos estudos da comunicação e da teoria sociológica. Muitos dos meus alunos, mestrandos e doutorandos foram, desde então, introduzidos à obra e ao pensamento de Bruno Latour, e muito me orgulho de ter podido ajudá-los no conhecimento da sua obra em uma área em que ele é (ainda, mas cada vez menos) pouco estudado e debatido. Para se ter uma ideia, tenho feito palestras e cursos pelo Brasil na área da comunicação e afins, e são poucos os que leram, por exemplo, o “Investigações sobre os modos de existência”, obra fundamental que resume bem 30 anos do seu trabalho nas suas questões centrais sobre a verdade, os modernos e a diplomacia necessária para vivermos em um mundo que respeita mÚltiplos modos de existência.

O seu trabalho resgatou também algo da minha formação em engenharia, que estava esquecida, ou escanteada por mim mesmo, de forma mais ou menos consciente, justamente por, no meu percurso, desejar sair do “técnico” e ir ao “social”. Agora percebo, entendo e tento explicar aos meus pesquisadores o quão ilusório e inalcançável era esse movimento. Os domínios são desde sempre entrelaçados. Acho que por isso tenho um entendimento “situado” do seu trabalho, justamente por ter transitado entre as engenharias (que frequentei por 4 anos na minha formação básica), e as ciências humanas (em que trabalho, pesquiso, escrevo e ensino, há 30 anos).

No trabalho de Latour, e de todos os que circulam em torno de suas ideias, e em torno de todos em torno dos quais Latour circulava, busquei, encontrei e continuo encontrando uma forma de pensamento perspicaz, motivador e perturbador (uma “filosofia empírica” como ele chamava em alguns momentos) que pra mim faz sentido e me ajuda a entender o “mundo, o universo e tudo mais”, como costumo dizer, brincando, aos meus alunos. Cada pensador tem hierofanias com suas referências preferidas. Tenho outros, mas Latour é certamente decisivo na minha atual trajetória. Isso não significa falta de divergências, mas que o encontro com a sua obra, e o privilégio de ter estado com ele pessoalmente em 2012 em Salvador (fui cicerone dele e de sua esposa por três dias aqui, quando da finalização do evento “A Vida Secreta dos Objetos”, no ICBA e o lançamento do seu “Reagregando o Social”) foi determinante para a minha atual cosmovisão e para o direcionamento das minhas atividades acadêmicas e literárias.

Nosso percurso como intelectuais é feito de encontros com as ideias e o nosso pensamento é um caminho errático em busca de si mesmo. Nunca me esquivei de tomar direcionamentos diferentes e desviantes se meu pensamento (em busca de um princípio sobre o que acho ser a verdade – “um enunciado forte dentro de cada modo”, com o ensina Latour) assim me indicasse. Buscando princípios e entendimentos mais profundos, independentemente do conforto em que estava, aceitei os desvios. Foi aprendendo, e aprendendo devemos ir. Ou é isso, ou é a paralisia, o conforto preguiçoso e mortal das mesmas ideias que não mais dialogam com a vida.

A sensação é de que ele foi tão cedo, que tinha tanto ainda para nos dar…, principalmente para ajudar a entender e a buscar saídas inteligentes para a crise do Antropoceno. Estas não serão pela política que pensa a ecologia, mas pela busca de formas de habitabilidade de modos plurais na Terra, em Gaia, como o cerne da política. Nossas crises, hoje, são todas crises de habitabilidade. Como fazer política, circular as palavras em prol de um comum e encontrar formas de habitar o planeta com espaço para todos? Sem Latour vai ficar mais difícil responder a essa pergunta.