Apropriacao Urbana

Vários projetos com tecnologias móveis têm colocado em jogo a relação de apropriação do espaço público. Vou mostrar alguns exemplos adiante. Trata-se, como venho insistindo, em formas de apropriação dos espaços das cidades por intermédio de dispositivos móveis, criando territórios informacionais onde os usuários podem reconhecer outros usuários, anotar eletronicamente um espaço, deixando sua marca com um texto, uma foto, um som ou um vídeo, ou jogar, tendo como pano de fundo rua, praças e monumentos reais.


O projeto mobotag || connecting your city with mobile tags permite que por e-mail qualquer pessoa possa anexar informação a um espaço urbano…como vimos acima, trata-se de apropriação do espaço por “anotação eletrônica”, criando um “lugar”, no meio do “vazio” de sentido do espaço urbano. Como diz o projeto: “Tag any street address in NYC with your mobile phone!. Send a text message to nyc@mobotag.com with your address. Add tag with picture, text, video, or sound”

Acredito que as práticas atuais com as chamadas mídias locativas são muito próximas daquilo que os surrealistas, dadaístas e situacionistas buscavam pela deriva e pela ocupação de espaços das cidades. Eles realizavam pequenas performances (como leituras por exemplo), transformando o andar no espaço público em uma arte. Essas práticas, como as atuais com celulares, laptops, GPS ou etiquetas RFID, buscam criar formas de apropriação dos espaços das cidades, cada vez mais impessoal, frio e racionalizado. Talvez possamos pensar nessa nova forma de “publicação” e de “contato permanente” com o outro, como uma apropriação pela “superfície”, como formas de escrita e de leitura das relações sociais e dos espaços: uma experiência ao mesmo tempo social e estética. Como disse Simondon, “a polaridade característica da vida está no nível da membrana”.


No projeto Flagr, o usuário pode, por celular, enviar e-mail com suas impressões sobre os lugares interessantes na cidade. Esses lugares aparecem em mapas e passam a formar uma leitura livre e coletiva do espaço público. Trata-se, com efeito, de uma espécie de “bookmark” do mundo real. Mais uma vez, vemos aqui formas de criar e de dar sentido a lugares da cidade, como uma marca do “ver”, colocada em mapas para que outros “vejam” também.

Da mesma forma Simmel vai nos ajudar a não lamentar a “superficialidade” das relações sociais e mostrar como o estrangeiro é a figura mesmo do urbano (em “Digressions sur l’Étranger). O habitante da cidade está para Simmel em um estado de “indiferença flutuante”. Nesse sentido, talvez possamos ver a superfície das cidades como um lugar de sentido nessa experiência antropológica do passante, do flâneur, dos situacionistas, mas também dos novos conectados a dispositivos móveis e a redes sem fio que marcam de bits os lugares. Cria-se mesmo um “lugar”, algo dotado de sentido, na indiferenciação dos espaços urbanos. É por isso que o sociólogo francês Isaac Joseph vai dizer que “o território de um ator social ou de um grupo de autores é, além de toda a apropriação, uma região de papéis acessíveis”…Estamos vendo com as novas ferramentas da Web 2.0, formas crescentes de acessibilidade (ao outro, ao espaço, às informações).


Nesse sentido, Dodgeball permite que o usuário mande SMS para uma lista de amigos cadastrados dizendo onde ele está em um determinado momento. Assim, pessoas de sua lista de amigos que estiverem por perto podem ter assim a oportunidade de encontrá-lo. Busca-se o contato permanente fazendo a ligação do espaço eletrônico e do espaço físico.


O mesmo ocorre com o projeto Radar que mapeia e identifica os celulares cadastrados criando zonas de acesso e de contato permanente, indicando onde estão os correspondentes.


Já o projeto Imity, similar aos dois anteriores, coloca pessoas em contato, identificando-as por redes bluetooth e telefones celulares. No caso, o interessante aqui é que o projeto permite que pessoas que só se conhecem online possam, caso estejam no mesmo lugar por acaso, se identificarem por redes bluetooth. Assim, se você estiver em um bar e esse seu amigo virtual (que voce não sabem quem é fisicamente) estiver por perto, os telefones celulares se reconhecerão um ao outro e vocês poderão se encontra pessoalmente, em “real life”.

Esses três sistemas citados acima colocam pessoas em contato “permanente”, no meio do ambiente anônimo das grandes cidades, tentando criar, na “superficie”, uma membrana, uma zona de contato e “acesso” e criar, recriar, fortalecer, redes de sociabilidade. Dessa forma, os “estrangeiros” do espaço urbano podem vivenciar novas experiências de viver o espaço das metrópoles.


Outro projeto interessante visa captar, através de uma rede de sensores sem fio, dados sensíveis da cidade como ruídos, poluição, radiação, pessoas, temperatura, umidade…Um trabalho que une arte e monitoramento como uma leitura da cidade de dados. Essa leitura se dá por mapas que mostram e criam sentido ao espaço urbano. É o projeto “Sensity”: “Datacities: The Emergent City. Imagine walking out the door, and knowing every single action, movement, sound, micro movement, pulse, and thread of information is being tracked, monitored, stored, analysed, interpreted, and logged. The world we will live in seems to be a much bigger brother. We can use new technologies to imagine a world where we are liberated and empowered, where finally all of the technology becomes more than gimmick and starts to actually work for us. My wireless sensor network visualize cities as ‘worlds’ full of data, a city of bits. These dataspaces can help us understand the fundamentals of our outside environment”.

A análise do urbano ganha força com a idéia de “laboratório urbano” com a Escola de Chicago nos anos 1930. Os sociólogos do começo do século XX e do fim do século XIX (Simmel, Tarde, Park…) falam, grosso modo, de três formas de mobilidade. . A primeira mobilidade é aquela que compreende o homem como um ser da locomoção, sendo que a cidade o transforma naquele que experimenta tudo pelo olhar, daí a figura do estrangeiro em Simmel, que vê tudo de fora. Transforma-se, com a cidade moderna, a experiência do “ouvir” (aqueles que contam algo, nas pequenas cidades e no meio rural), naquela do “ver”, do que está agora desabrochando em uma “floresta de signos” (Baudelaire) diante dos “olhos”. A segunda mobilidade urbana é aquela do mobilidade social e do lugar de habitação. O habitante da cidade moderna se desloca constantemente e pode trocar de status e de papel social pela educação, pela profissionalização, pelo enriquecimento… A terceira é a que Simmel chama de mobilidade sem deslocamento, a mobilidade que cria uma massa, a mobilidade social pela moda que nos faz aderir ao comum e ao mesmo tempo nos diferenciar. Para Tarde, o jornalismo cria o público e a moda a massa. Nos deslocamos pelo que se chama hoje a “tendência” (na música, nas artes, na roupa, na culinária…).

Talvez possamos, como hipótese, pensar em uma quarta mobilidade, que é a mobilidade informacional, como uma capacidade cognitiva de deslizamento por bens simbólicos, por mensagens, por informações. No começo do século XX essa desterritorialização comunicacional se dava pelos meios de massa: jornais, rádio, TV, revistas, e pelos meios interpessoais: correio, telefone. Aqui, o deslocamento pelos bens simbólicos era imóvel, na maioria das vezes, em espaços privados, sem possibilidade de emissão massiva. Hoje, no começo do século XXI, os territórios informacionais (agora telemáticos e digitais) estão em expansão planetária, utilizando ferramentas ubíquas e permitindo uma mobilidade informacional (emissão e recepção de informação) acoplada a uma mobilidade pelo espaço urbano. Daí o objetivo de começarmos esse texto falando de novas formas de criar sentido, apropriar e estabelecer contatos através das superfícies dos espaços urbanos pelas tecnologias da mobilidade digital. Nessa nova mobilidade informacional, a mobilidade tecnológica (a dos dispositivos) pode permitir uma nova maneira de compreender, dar sentido e criar vivências no espaço das cidades contemporâneas.

Esse texto, como todos que coloco nesse Carnet, é um “work in progress”. Comentários, críticas e sugestões serão muito bem vindos.

Para Ler:

Blanchot, Maurice., La folie du Jour., Paris, Fata Morgana,1973.
Hannerz, Ulf. Explorer la Ville, Paris, Minuit, 1983.
Joseph, Isaac., El Transuente y el espacio urbano., Gedisa, Barcelona, 1988.
Simmel, Georg., Digressions sur l’étranger., in L’École de Chicago. Naissance de l’écologie urbaine. Paris: Éditions du Champ urbain.1979.
Simondon, Gilbert., L’individu et sa genèse physico-biologique, Paris, PUF, 1964.
Tarde, Gabriel de., A Opinião e as Massas., SP, Martins Fontes,2005.

One Reply to “Apropriacao Urbana”

  1. minha primeira reação foi estupidamente comum: "estamos perdidos", depois continuei lendo e refletindo… imagino que possa ser uma maravilha. quantos que como eu agora, há alguns anos, não tiveram esta mesma estupida reação ao ouvir falar dos aparelhos celulares que, embora nos encontrem em "qualquer lugar" é praticamete impossivel aceitar viver sem. mais a fundo no ponto, é a maravilha do ciberespaço se desprendendo da exclusividade virtual e começando a dar sua mão ao mundo "real", como Michelangelo em a criação de adão… é delicioso e ansioso acompanhar de perto estes passos que devem ser dados tao lentamente.

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