Circulou em algumas listas esse texto do Nizan:

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Se o baiano ou no uma raa eleita, h controvrsias.

Mas que se trata de uma raa privilegiada, no h dvida.

Nizan Guanaes

Quando eu conheci Jorge Amado em Paris, ele me levou para almoar num bistr

perto do seu apartamento no Marais. Ao longo do caminho, fiquei pensando em

algo bem inteligente para impressionar o grande escritor. Ao sentarmos

mesa ele disparou: “Nizan, voc j reparou como a bunda da Me Cleusa

grande?”. A Bahia assim. Desconcertante. Pense num absurdo, multiplique

por dois: na Bahia j aconteceu. H em Salvador uma casa funerria que se

chama Decorativa e uma companhia de txi areo que se chama BATA (Bahia Txi

Areo). dentro deste esprito esportivo que a Bahia surpreende desde 1500.

Caetano Veloso me disse rindo que os baianos e os judeus se julgam raas

eleitas e (sic) que ambos tm razo. Se somos ou no raa eleita, h

controvrsias. Mas que uma raa privilegiada no h dvida. Castro Alves,

Rui Barbosa, Jorge Amado, Assis Valente, Joo Gilberto, Caetano, Gal, Gil,

Bethnia, Daniela Mercury, Glauber Rocha, Dorival e Nana Caymmi, Raul

Seixas, Ivete Sangalo e agora Piti. No pode ser coincidncia. No .

fruto da energia que o ndio enterrou, que o portugus descobriu misturado

com o ax que o negro trouxe. essa energia que buscam os cansados, os

estressados, os sem esperana, os de alma ou cadeira dura. E a Bahia os

acolhe com sua graa e sua beno. Dianne Vreeland diz na pea Full Gallop,

grande sucesso na Broadway, que o azul mais bonito o cu da Bahia. Tudo na

Bahia tem luz, sobretudo as pessoas. Que em sua simplicidade, com sua f,

com suas peles negras e dentes alvos, danam, cantam e iluminam um mundo

rico, mas cada vez mais pobre.

Um desses endinheirados, mas pobres de esprito, certa vez resolveu pegar no

meu p,numa festa, e me perguntou: “Se a Bahia to boa, porque voc no

mora l?”. O Orix me ajudou e eu respondi na lata: “Porque l eu no me

destaco, so todos baianos”.

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Desculpem mas no resisti:

Nizan, sorry, mas o baiano no raa e no privilegiado, isso no h dvida!

Moro em Salvador. Diferentemente de muitos baianos especiais. J apontei, em outros textos, as virtudes da baianidade. Agora vou apontar os melefcios desse imaginrio forjado.

Vejamos o que viver na terra da felicidade:

Acordo irritado na maioria dos meus fins de semana, feriados ou mesmo dia til porque um imbecil insiste em me fazer ouvir o som do carro dele a toda altura tocando os ltimos sucessos do arrocha, da quebradeira e da “ordinria”…da maravilhosa msica baiana. Peo pra diminuir e ele nem olha pra minha cara. Alis, meus vizinhos so assim, no dizem bom dia, boa tarde e se voc segurar a porta para um deles passar, no dizem obrigado. O povo aqui to hospitaleiro quanto um carioca que diz, “aparea l em casa”: isso quer dizer…nunca! Se voc estiver bem ? de sade, de dinheiro, de aparncia, ok, se no, os hospitaleiros baianos nunca vo te procurar – e digo isso depois de ser questionado (eu dizia, “o baiano hospitaleiro”) por vrios amigos de Braslia, Vitria, Minas, Rio e Sampa, que moram e moraram aqui e sentem essa recepo “calorosa”.

No trnsito no se respeita nada; na rua, na televiso e no rdio, todos falam errado e com a mesma alegria de sempre. Essa alegria uma maneira de no pensar, de no ler, de no questionar nada de si ou do mundo. tanta alegria e tantas pessoas especiais que elas no precisam mesmo pensar em nada, s no prprio umbigo, esperando a hora de “estrear” nas ruas fedorentas, nos bares sem servio ou nas praias com coc de cachorro e esportes que invadem a areia…Tudo feito, inclusive o texto ao qual respondo, apenas para requebrar e para se divertir… vidinha boa. O outro que se dane, e se no est alegre, ou est com pressa: “v pra So Paulo”.

Os que moram aqui sabem que as ruas no tm caladas, nomes ou nmeros (sim, as vezes tm, no excesso baiano, dois nomes, trs nmeros e carros nas vias pedestres). Alm do mais, esto cheias de buracos (sem aviso aos motoristas ou pedestres – que no so considerados nem gente, nem raa, e o nico privilgio ser atropelado por bbados que no largam o volante de seus carros), e a cidade do Salvador no seu todo, no o eixo Barra-Ondina, Pituba-Itaigara, uma favela s. Esgoto no tem, luz s com gato… O ndice de desemprego um dos maiores do Brasil e o que tem de miservel pedindo esmola ou vendendo amendoim ? eles no apenas vendem mas te cutucam, te obrigando a dizer um “no” a cada 30 segundos – no brinquedo no. Haja felicidade!

Vejam que o lixo, o banheiro e o palco individual sempre a rua, o espao pblico: “jogo lixo do nibus e do meu Audi, mijo na rua, fao meu show com meu som para todos, cimento a praa publica e coloco meu “box” de acaraj, meu bar, etc.”. At mesmo a baiana do acaraj, esse smbolo da baianidade, da alegria e da simpatia, no passa de uma trabalhadora antiptica, pelo menos as famosas que freqento, Dinha e Cira. Vo ser antipticas assim l em So Paulo. Te atendem mal e ainda usam a rua como se fosse delas. Uma loucura mesmo o baiano…oh raa privilegiada!

Mas ningum t nem a. Como fala o publicitrio, o importante dizer, criar, inventar e poluir o imaginrio de todos ns com essa de “orgulho de ser nordestino”, ou “baiano raa privilegiada”. Agora pergunto: orgulho de qu? Privilegiada em qu? S se for da misria, da incivilidade, da violncia, da invaso do espao alheio e privado, da alegria doentia que parece mais uma forma de fugir do mundo. Pelo amor de Deus, vem pra c Nizan. Mas ele (eles, os privilegiados) no vem no. E o jeito tupiniquim de ser deve fazer eles, os baianos especiais, acharem So Paulo, ou o Rio, ou BH ou Porto Alegre to importantes quanto Londres, Paris ou NY.

Chega de pompa, de narcisismo e de cegueira. Chega desses idiotas que vivem de um capital simblico falsoe insistem em dizer que o baiano uma raa (sic) privilegiada. S se for da fome, do cncer de pele pelos efeitos do sol que no d trgua, do desrespeito a toda e qualquer lei e tica de convvio social, da invaso do espao do outro, do descaso com seus miserveis, doentes e ignorantes (e so muitos), do descaso com a coisa pblica.

Moro em Salvador e espero a redeno. A primeira coisa para que o baiano possa almejar a “raa superiora” (sim, eu sei que ns j nos achamos l)seria desenvolver a autocrtica, a auto-ironia e um pouco de modstia. Assim, alguma coisa poderia mudar, j que no so especiais e no tm nada (economia subdesenvolvida, povo ignorante, misria, fome, favelas, etc., etc…). Mas estamos longe disso, e textos como o de Nizan s reforam essa imbecilidade generalizada. Aqui no h critica, s festa, no h pensamento negativo sobre si mesmo, s afirmao, s a alegria da festa e o “orgulho de ser baiano”. Ora, sem ironia, sem crtica e sem olhar o outro com respeito no h mudanas. J que tudo est bom, tudo maravilho (vai ser conservador assim l na China), essa raa (sic) s pode ser mesmo privilegiada.

Ou alguns que fazem parte dela, e que esto bem longe. Esses falam de si mesmos,criam e alimentam esse narcisismo que s nos deixa onde estamos: no fim do poo e… alegres!

Estou falando de Salvador, mas poderia estar falando do orgulho gacho, mineiro, carioca ou paulista. Que fique bem claro. No fundo esse orgulho de ser brasileiro que tem algo de errado, de subserviente e pueril.

Moro em Salvador, meus pais so baianos e tenho uma linda filha baiana.

Andr Lemos, Salvador 17 de dezembro de 2004.

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