Escrevi o prefácio do Livro “Redes Sociais, Comunicação, Organizações”, publicado em 2011 pela Difusão Editora e organizado por Ivone de Lourdes Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas (Abrapcorp) e por Marlene Marchiori, diretora Editorial da associação. Acho que pode interessar.
Prefácio
André Lemos (1)
Interpersonal networks and institutional organizations are assemblages of people; social justice movements are assemblages of several networked communities; central governments are assemblages of several organizations; cities are assemblages of people, networks, organizations, as well as of a variety of infrastructural components, from buildings and streets to conduits for matter and energy flow; nation-states are assemblages of cities, the geographical regions organized by cities, and the provinces that several such regions form.
Manuel DeLanda (2006, p. 5-6)
Uma organização é um conjunto mais ou menos estável de atores em rede com o objetivo de realizar uma ação. A estabilidade se dá pela harmonização da rede, pela resolução de conflitos e de controvérsias. Resolver controvérsias é estabilizar e criar caixas-pretas. Um livro acadêmico deve ser resultado da tentativa de abrir caixas-pretas, de questionar estabilidades, de fomentar e expor controvérsias sobre um determinado assunto. É o que se propõe esse livro: discutir as organizações tendo por filtro as redes sociais e a comunicação, em uma época de amplo desenvolvimento de redes sociais eletrônicas e da banalização de complexos artefatos tecnológicos.
Certamente, devemos pensar as organizações por suas dimensões da comunicação e das redes sociais. E isso desde as primeiras organizações humanas. Toda organização é um conjunto, uma rede de atores em processo de comunicação (mediação, tradução), buscando realizar uma ação, constituindo o cerne mesmo do social. Podemos pensar, como sugere a “teoria ator-rede – TAR, que as organizações são associações. Ou, como sugere a ”assemblage theory” – AT, que elas são “montagens” ou conjuntos. As duas teorias tem muito em comum e podem ser úteis para pensar as organizações contemporâneas (2).
Toda associação/organização busca manter-se no curso de uma ação. Ela visa estabilizar fronteiras e equilibrar suas relações com diversos actantes (3), internos e externos, humanos e não-humanos. As organizações procuram atingir equilíbrio e estabilização. Quando isso acontece, o conjunto se homogeneíza e a caixa-preta se forma. Para a TAR, caixa-preta é uma associação/organização que funciona de forma tão coesa que desaparece das preocupações. Ela pode ser um objeto técnico, um conceito ou uma empresa. Uma boa organização/associação é aquela na qual sua ação principal (o seu objetivo maior) se realiza sem que sua estrutura interna apareça muito. Ela é, assim, um intermediário e não um mediador (4). É como escrever ese prefácio sem ter que pensar no meu computador. Se ao escrever o computador funciona bem, ele é um intermediário e minha atenção está toda no texto. O computador é, assim, uma caixa-preta.
Mas tudo pode mudar. E tudo muda. A máquina, essa organização complexa de actantes humanos e não-humanos, pode travar, desligar ou não funcionar mais. O que era fundo vem à tona. Ela não se comporta mais como um intermediário, mas como mediador, produzindo ação, traduzindo outros actantes, perturbando a ação anterior (escrever este texto).
Consequentemente, o computador passa a revelar suas redes complexas, atravessando as dimensões local e global, o passado, o presente e o futuro. Questões emergem. O que está causando o defeito? Uma peça defeituosa fabricada da China? Um bug no software? Uma pane na rede elétrica? Problemas na placa-mãe ? Qual seria o problema e o que é mesmo uma placa-mãe? Erro de projeto do computador, da memória…? Quem vai consertar? Onde ficam as empresas de assistência técnica? Quais são os meus direitos? Etc. As questões são de diversas ordens e se ramificam: questões técnicas, de normatização, de mercado, de política, de usabilidade, de inclusão social… A caixa-preta se abre e as redes de actantes começam a aparecer (5).
Caixas-pretas podem ser computadores, empresas, conceitos, dados científico, estereótipos… Uma organização/associação é um conjunto, uma montagem de elementos heterogêneos (humanos e não-humanos) composto por dinâmicas redes (de atores), por relações (sociais) e por complexos fluxos comunicacionais (mídias) que buscam estabilização. Pensar as organizações/associações é, necessariamente, pensar seus fluxos, suas redes e seus processos comunicacionais. Os cientistas sociais devem tentar abrir caixas-pretas, questionar conceitos e situações estabelecidas, rever fronteiras e analisar os processos territorializantes (reforço) e desterritorializantes (descontrole), para discutir a estabilização das organizações.
É muito difícil, senão impossível, desatrelar rede, social, comunicação e organização. Hoje a questão é ainda mais crítica, já que entramos em uma era da intercomunicação planetária e das redes sociais digitais (6). Pela linguagem da TAR, podemos dizer que rede é o que se forma da comunicação entre actantes em uma organização temporária de eventos. Comunicação é a mediação entre actantes em uma rede organizada no espaço e no tempo pela troca de mensagens e/ou informações. Organização é uma associação, uma rede de atores (humanos e não-humanos) temporariamente estabilizada por fluxos comunicacionais e trocas informacionais. Social é o que surge das associações.
As redes técnicas sempre marcaram o desenvolvimento das organizações. Hoje, as redes telemáticas são a infraestrutura central da cultura do século XXI, presentes em todas as áreas da sociedade. É fácil perceber as grandes transformações pelas quais passam as instituições contemporâneas com o advento das novas tecnologias de informação e comunicação: bancos, universidades, laboratórios, empresas jornalísticas e de entretenimento, administrações públicas e privadas… É difícil encontrar, nas grandes metrópoles contemporâneas, organizações que não estejam sujeitas às influências das redes sociais digitais e da comunicação telemática.
Essa conjuntura demanda esforços acadêmicos consideráveis. As organizações têm, agora, instrumentos poderosos de visualização de dados (para monitoramento, controle, vigilância), de comunicação entre os diversos atores, de acesso aos usuários e consumidores de seus produtos (veja o uso do Twitter para esse fim), de memória institucional, de processamento de informações em tempo real, de comunicação multimidiática planetária (textos, sons, imagens fixas e animadas). Elas têm utilizado as redes e as mídias digitiais para reforçar laços, estabilizar fronteiras, abrir caixas-pretas e inovar.
Para as organizações contemporâneas, as novas mídias, as redes sociais e a comunicação global são um pharmaco, ao mesmo tempo veneno e remédio. Elas servem tanto para potencializar e estabilizar as redes e os fluxos comunicacionais, aumentado sua coerência interna e ampliando a eficácia de sua ação externa, como também para fomentar controvérsias, revelar inconsistências e visualizar problemas. Isso pode levar, por um lado, a um novo arranjo organizacional, com inovação e fortalecimento (criação de uma nova organização, diferente ou maior do que a anterior), ou, por outro, à desestabilização e morte (7). As redes, as mídias sociais e a ampliação dos processos comunicacionais não vão, necessariamente, garantir a estabilidade das organizações. Elas são ferramentas para a inovação, para a comunicação, mas também para abertura de caixas-pretas.
O livro Redes sociais, comunicação, organizações é uma contribuição valiosa nesse campo. Como afirmei no início, ele procura abrir caixas-pretas. Os organizadores oferecem ao leitor uma abordagem ampla e diversa sobre o assunto, fomentando controvérsias e debates interessantes. Os artigos, que compõem seus capítulos, foram escritos por pesquisadores de altíssimo nível. Eles versam sobre, entre outros temas, a dinâmica social das redes, a interação social, a economia e a globalização, o conhecimento, o espaço público, apontando para desafios atuais nesses domínios. A obra apresenta, também, interessantes análises de casos. O livro é, certamente, de interesse para gestores (de organizações públicas e privadas), professores, pesquisadores e estudantes na área das ciências sociais, bem como para o público em geral, interessado em compreender as novas organizações da sociedade em rede.
NOTAS
1. Professor associado da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom-UFBA), pesquisador “1 b” do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2. Este não é um livro sobre a TAR ou a AT. Essa é a perspectiva adotada neste prefácio. Não terei tempo aqui para expor as duas teorias em profundidade, nem mesmo as suas diferenças. Ver Latour, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network theory. New York: Oxford University Press, 2005. e DeLanda, Manuel. A new philosophy of society: assemblage theory and social complexity. London; New York: Continuum, 2006.
3. Para a TAR, um actante é tudo aquilo (humano, não-humano) que produz ação, criando mediações e traduções.
4. Essa diferenciação não é sem problemas. Latour considera que mesmo os intermediários produzem ação. Assim, só há mediadores. Mas podemos entender o intermediário com um mediador harmonizado, sem conflitos e controvérsias. Já o mediador é um actante a plena força, mediando e traduzindo outros actantes, produzindo ações e diferenciações.
5. Rede, para a TAR, pode ser definida como a associação temporária e irredutível que se forma na ação dos actantes. Uma rede não é aquilo que oferece o caminho para as conexões (como rede de esgoto, de água ou de telecomunicações). Ela é o que se faz e se desfaz das associações.
6. Frequentemente, o termo “redes sociais” é utilizado para se referir, sem muita precisão, às redes formadas por pessoas, tendo como base tecnológica as novas mídias digitais (Twitter, Facebook, blogs e demais fóruns de discussão nas redes telemáticas). Mas só há social em rede e toda rede é social, mesmo associando não-humanos. Essa perspectiva é de Gabriel de Tarde, para quem “toda coisa é social”, diferentemente de Durkheim, para quem “o social é uma coisa”. Veja-se a polêmica protagonizada por Bruno Latour no interessante vídeo The Tarde/Durkheim debate – em.
7. Para uma análise mais completa sobre a formação desses conjuntos, ver DeLanda (2006).