Paisagem

Paisagem

Falava de paisagem e ambiente midiático no último post. Retomo aqui a noção de paisagem em Anne Cauquelin (A invenção da paisagem, Martim Fontes, SP, 2007).


Momento fundador: “A tempestade” de Giorgione, 1505.

Paisagem é uma invenção a partir da perspectiva (“per scapere” – o que se abre), que inaugura um novo regime ótico. Não havia noção de paisagem entre os filósofos gregos já que a imagem era apenas uma forma de fundo para narrar, para contar “istorias” sob o signo do logos, da razão. Não há aqui a visão do que desponta. Isso só passa a acontecer com o regime moderno, com a perspectiva, com o ponto de fuga que permite, aí sim, que se veja a paisagem. Ela é uma construção mental dada pela possibilidade de “ver”, criada pelo artifício da perspectiva. A paisagem é uma invenção de uma técnica do olhar. Segundo Cauquelin:

“(…) Vemos em perspectiva, vemos em quadros, não vemos nem podemos ver senão de acordo com as regras artificiais estabelecidas em um momento preciso, aquele no qual, com a perspectiva, nascem a questão da pintura e a da paisagem” (p. 79). “Esse ‘mostrar o que se vê’ faz nascer a paisagem, a separação do simples ambiente lógico (…) . A istoria e suas razões discursivas passam para o segundo plano: e, veja, falamos de ‘planos’, de proximidade e de longes, de distancia e de pontos de vista, ou seja, de perspectiva” (p. 81-82).

É o enquadramento que inspira a ordem. A “janela” que enquadra “é indispensável à constituição de uma paisagem como tal. Sua lei rege a relação de nosso ponto de vista (singular, infinitesimal) com a ‘coisa’ múltipla e monstruosa” (p. 137).


Paisagem Urbana em Edmonton, Canadá

Sobre as paisagen urbanas, afirma Cauquelin: “emolduramos, fazemos da cidade paisagem pela janela que interpomos entre sua forma e nós. Numerosas vedute, uma esquina de rua, uma janela, um balcão avançado, a perspectiva de uma avenida. O prospecto aqui é permanente. A cidade participa da própria forma perspectivista que produziu a paisagem. Ela é, por sua origem, natureza em forma de paisagem.” (149). Mais ainda, “a paisagem urbana é mais nitidamente paisagem que a paisagem agreste e natural…sua construção é mais marcada, mais constante, ainda mais coagente. Ali tudo é moldura e enquadramento, jogos de sombra e de luz, clareira de encruzilhadas e sendas tortuosas, avenidas do olhar e desregramento dos sentidos” (p. 150).


Paisagem Digital no Second Life

Com as novas imagens digitais, não haveria mais paisagem e voltaríamos a um registro visual pré-perspectivista, já que o que aparece como natureza é a performance do nosso conhecimento, do protocolo, do algoritmo. Não há assim o ‘ver’, mas o deleite do conhecimento, da “istoria” dos objetos destacados de um fundo que não existe como fundo: “temos somente a imagem, transmitida por câmeras, dados digitais em monitores, sem ponto de fuga, e ilegível, até mesmo indecifrável para quem não estiver de sobreaviso (…) podemos apenas perceber que intelectualmente que há, sem dúvida, ‘algo a ser percebido’ (…) a própria noção de paisagem é desmontada” (p. 179).

Vejamos que é bem essa a sensação que temos quando apreciamos uma obra de arte eletrônica onde a explicação e o ‘modo de uso’ deve ser explicitado para a sua fruição. Trata-se assim de uma ‘segunda natureza’, o nosso “conhecimento” algoritmico e não do ver. “A paisagem, com a imagem digital, não está mais contra natureza, isto é, em acordo constratado com seu fundo, não se apóia mais na verdade natural que revela ao mesmo tempo em que oculta, dada contra, em troca de, equivalente a… É uma pura construção, uma realidade inteira, sem divisão, sem dupla face, exatamente aquilo que ela é: um cálculo mental cujo resultado em imagem pode – mas isso não é obrigatório – assemelhar-se a uma das paisagens representadas existentes. Basta estabelecer as leis para tanto” (p. 180-181).

Por exemplo, as imagens de síntese na arte eletrônica ou o “Second Life” podem ser exemplos claros dessa ausência de paisagem (de uma “realidade inteira”). Essas paisagens virtuais são assim “concepções” realizadas por um programa, a “autocelebração de nosso poder de concepção” (p. 183). Com as imagens digitais de síntese e mundos 3D simulados, estaríamos retornamos a um esquema visual semelhante ao da Idade Media ou Bizâncio, onde “a qualidade simbólica dos objetos representados determinava a situação, a grandeza e as relações que eles mantinham entre si. Nenhuma ‘paisagem’ – entidade de ligação autônoma – vinha preencher o espaço intersticial entre as figuras (…). Nessas condições, a paisagem, tal como a praticamos há 500 ou 600 anos, seria um parêntese em uma história das formas perceptivas…sob a condição, claro, de que essas ‘novas imagens’ tenham alguma chance de transformar nossa aparelhagem perceptiva” (p. 184).