Mais sobre Lei da Internet

Mais sobre a Lei da Internet

Destaco dois posts sobre a Lei Azeredo emergentes depois da circulação do manifesto e do “abaixo-assinado” (que tem nesse momento, depois de 48h publicado, 6059 assinaturas, and counting…): um do Observatório da Imprensa e outro do Social Media (Raquel Recuero). Reproduzo os dois abaixo enquanto ainda não poderei ser preso por isso! :-))

O post do Observatório da Imprensa, de Carlos Castilho, reforça os pontos do nosso manifesto (obrigado Fernando).

“O senador Eduardo Azeredo (PSDB –MG) transformou-se no cruzado do controle da internet ignorando, voluntária ou ingenuamente, que a liberdade de circulação e recombinação da informação está na base do processo de geração de conhecimento sobre o qual a nova economia digital.

Dito assim parece complicado e pretensioso, mas o fato é que a proposta do senador tucano, cujo nome está associado ao mensalão mineiro, revela uma teimosia em não informar-se sobre o que a internet representa no mundo atual. No ano passado, o político tucano esteve no centro de um debate sobre regulamentação da Web, que gerou muita informação sobre a rede mundial de computadores.

Mas ele aparentemente mostrou-se refratário aos novos conhecimentos, pois levou adiante o seu ímpeto regulatório. É claro que a internet não está imune ao crime e ao delito, porque obviamente ela não é e nunca será um colégio de freiras. O problema é que não se pode tentar regular um sistema novo usando regras e valores antigos.

Para criar um conjunto de condutas e valores capazes de coibir a delinqüência virtual (tipo pedofilia, roubo, difamação, chantagem, terrorismo etc) é necessário primeiro procurar entender a natureza do processo no qual estão inseridas a internet e a Web. Impor um modelo repressor idêntico ao usado para canais de comunicação como radio, televisão e cinema, é uma absurda perda de tempo e de energias, porque até os neófitos da rede sabem que será um fracasso.

Se eu fosse cínico recomendaria: aprovem o substitutivo Eduardo Azeredo porque não há a menor dúvida de que a lei será inócua e ficará enterrada nos porões do poder legislativo nacional. O problema é que agindo assim, estamos perdendo uma oportunidade única para ampliar a consciência das mudanças em curso no Brasil e no mundo.

A internet não é apenas um conjunto de computadores interligados entre si. Ela já é uma expressão do novo sistema de produção econômica e cultural gerado a partir de inovações tecnológicas como a computação e a digitalização, que por sua vez são o resultado de pressões dos agentes econômicos por processos mais rápidos e automatizdos, capazes de atender à demanda de uma população em crescimento acelerado.

Tentei nesta frase sintetizar grosseiramente todo o processo do qual a Web e a internet são parte. Neste processo, a rapidez de circulação e recombinação de informações é um componente essencial porque todos os sistemas usuais de regulamentação e certificação se mostram incapazes de acompanhar o ritmo frenético da digitalização.

As viagens espaciais teriam sido simplesmente inviáveis sem a computação porque as calculadoras analógicas não conseguiriam nunca processar dados na rapidez e volume necessário para operações, como por exemplo, a reentrada na atmosfera terrestre. Por outro lado, a indústria mundial teria entrado em colapso sem a automatização e robotização viabilizadas pela revolução digital.

O mundo moderno tornou-se complexo demais para que continuemos a usar sistemas e valores surgidos junto com a da revolução industrial. No contexto atual, a troca e conseqüente recombinação de informações, sejam elas em texto, áudio ou imagens precisa ser a mais ampla possível para que os conhecimentos sejam produzidos no ritmo exigido pela economia e pela sociedade contemporânea.

É por isto que a legislação vigente sobre direitos autorais e o próprio sistema de produção de leis tornam-se anacrônicos diante de sua incapacidade para acompanhar a inovação produzida por sistemas digitais em redes planetárias. Se não levarmos isto em conta, as propostas contidas no substitutivo em tramitação no congresso nacional serão tão inócuas como chover no molhado.

O debate sobre a regulamentação da internet necessita ser abordado noutras bases. A demanda regulatória existe e continuará a existir na sociedade do futuro. O que não dá, é tentarmos resolver um problema novo com ferramentas antigas. É o mesmo que usar o telégrafo na era do correio eletrônico.

Quando o ourives alemão Johannes Gutenberg inventou a impressão com tipos móveis em 1439 ele provocou um conjunto de mudanças que provocaram reações conservadoras muito parecidas com as embutidas no substitutivo do senador tucano[1].

P.S. Os professores André Lemos e Sergio Amadeu produziram uma petição ao Congresso Nacional para que o substitutivo do senador Eduardo Azeredo seja arquivado. Os interessados podem assinar o documento que contém uma contextualização ainda mais abrangente que a do post acima.”

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Outro post é da Raquel Recuero em resposta a um texto escrito pelo Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, Fábio Luis Mendes e circulado em e-mails.

“Muita gente não sabe, mas eu fiz uma faculdade de Direito e, na época, minha principal área de pesquisa era, justamente, o direito na Internet. Essa área de cibercrimes particularmente me interessa, assim como as discussões relativas ao direito autoral na Rede. É por conta disso que estou preocupada com o projeto do senador Azeredo. Vou explicar as razões.

O primeiro grande problema do projeto é, a meu ver, a questão penal. Os tipos penais propostos no projeto são, como disse o Pedro Rezende, abertos demais. O que isso quer dizer? Que os tipos previstos como “cibercrimes” no projeto são descrições de condutas muito, muito amplas. Vejam, por exemplo:

Art. 285-A. Acessar rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, sem autorização do legítimo titular, quando exigida;

A redação do artigo, conforme proposta no projeto substitutivo, é tão ampla que permite interpretações completamente absurdas. Qualquer tipo de acesso não autorizado, pela lei, será crime. E isso inclui praticamente qualquer coisa, desde usar o computador alheio, até ler os emails do ex-namorado. E a pena prevista para tal “crime”, vejam bem, é de reclusão de um a três anos e multa. Só para que se tenha uma idéia, a pena para homicídio culposo no Brasil é dentenção de um a três anos! Reparem que a pena prevista, no projeto do Senador, para alguém que acessa os e-mails de um ex-namorado (que é um exemplo perfeitamente plausível) é pior do que a pena prevista para um homicídio (ainda que culposo) no Código Penal Brasileiro! Isso porque a pena de detenção prevê o cumprimento em regimes aberto e semi-aberto e a pena de reclusão, prevê também o regime fechado (e, portanto, é considerada mais “pesada”).

Outro exemplo é o artigo seguinte, sob o título Obtenção, transferência ou fornecimento não autorizado de dado ou informação. Neste artigo, lê-se:

Art. 285-B. Obter ou transferir dado ou informação disponível em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, sem autorização ou em desconformidade à autorização, do legítimo titular, quando exigida:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Parágrafo único. Se o dado ou informação obtida desautorizadamente é fornecida a terceiros, a pena é aumentada de um terço.

De novo, temos outra conduta extremamente abrangente “obter ou transferir dado ou informação disponível” na Internet (o que inclui qualquer processo de navegação), que seria crime a partir do momento em que inexiste a autorização do legítimo titular. Por este artigo, por exemplo, enviar um e-mail com conteúdo não autorizado de um blog poderia ser considerado crime. E novamente, vemos que a penalidade é absurdamente alta para a conduta.

Ou seja, o que questiono aqui é qual o valor social o legislador está pretendendo defender. Não me parece ser algo que possa ser rapidamente compreendido pelo juiz ou jurista que discutirão a aplicação da lei, se aprovada for. É o direito do autor? É o direito à privacidade? Se esses fossem os casos, já não estarão previstos na legislação específica do direito autoral? E se fosse o direito à privacidade, o mesmo não está sendo fatalmente afetado pela necessidade dos provedores de gravarem dados de acesso de cada cidadão brasileiro?

Outro exemplo de tipo aberto:

Art. 163-A. Inserir ou difundir código malicioso em dispositivo de comunicação, rede de computadores, ou sistema informatizado.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Novamente “difundir código malicioso” considera crime, por exemplo, todos os emails enviados com vírus, mesmo que o tenham sido de forma inadvertida por alguém. Interpretando o artigo de forma estrita, sim, essa conduta poderia ser passível de processo criminal. E vejam a pena: novamente reclusão de um a três anos.

Outro problema que considero extremamente complicado é a exigência de que os provedores monitorem o acesso, gravando dados de IP, horários e etc. das conexões. Concordo com o Paulo Rezende novamente quando ele explica que essa “exigência legal” pode virar uma permissão para o monitoramento de muitas outras coisas. Acho sim que esse artigo (o art. 22 do substitutivo) não apenas abre um precedente para que nosos artigos venham a exigir dos provedores a vigilância dos indivíduos. Mais do que aumentar o custo do acesso, penso no que seria feito com esses dados e nas interpretações do que seriam esses. Mais do que isso, vejo facilmente valor de mercado para tais informações sobre o comportamento do consumidor e vejo uma brecha legal para a gravação e uso comercial dos mesmos.

Também não entendo – e não defendo – a re-criminalização de tipos já previstos no CPB, como o crime de “estelinato eletrônico” (art. 171, VIII do substitutivo). Não entendo qual a necessidade de legislar novamente sobre um tipo penal já existente que pode ser aplicado diretamente por analogia. O crime de estelionato já existe e não é tipificado de acordo com a forma que é cometido Estelionato é estelionato, independentemente se é feito pelo telefone (não há, no CPB, por exemplo, um crime de “estelionato por telefone”), por carta, ao vivo e etc. Qual a necessidade de especificar o estelionato “eletrônico”? Finalmente, a redação da conduta tipificada, novamente, é por demais abrangente. Vejam o texto:

VII – difunde, por qualquer meio, código malicioso com intuito de facilitar ou permitir acesso indevido à rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado

Nessa conduta incorreria aquele que, por exemplo, divulga uma senha para entrar em um jornal que precisa de registro ou um “gerador de senhas” para esse tipo de acesso. Em que pese a discussão sobre a legalidade ou ilegalidade da conduta, é simplesmente absurdo prever uma pena de reclusão de um a cinco anos!

Esses exemplos são apenas detalhes do projeto, que contém muito mais questões importantes e que precisam sim ser discutidas pela sociedade . E mais: acho que para tais projetos, é preciso uma assessoria muito mais especializada do que a que, aparentemente, o Congresso Nacional tem se valido. É preciso conhecimento amplo dos usos da Internet no Brasil, do que pode ser considerado interesse público e interesse do Estado, e do que não faz sentido legislar sobre.”