Minha contribuição ao caderno especial sobre o tema no jornal gaúcho Correio do Povo, organizado pelo Juremir Machado da Silva e publicado no último sábado.
Leveza
André Lemos (1)
Carrego a mochila com todos os objetos
Para me conectar livre, sem empecilhos.
E a quero sempre leve, muito leve.
Mas aquilo que é leve, pesa,
e o que pesa, eleva-se.
Insuportável leveza compulsória.
Das tecnologias em nanodimensões,
Aos argumentos nas redes sociais,
Só conexões sem atrito, flutuando no vazio.
Sem obstáculos e sem sujeira,
Nas conversas simples, em poucos caracteres,
Vagam espectros em tempo real.
Limpas e leves são as ações brevíssimas,
Sem incômodos, sem complicações.
Tudo fácil enredado e flutuante.
E na aparente desmaterialização
Da mochila que levo cheia de objetos,
O vazio dos dados atrai e conecta.
Mas a liberdade sem peso
É pluma que não pousa.
É hiperdensidade que aterra.
Dizem que leve é para ser livre!
Minha comida, minha bebida, minha roupa,
Meu celular, meu tablete, meu laptop.
Leve hoje, pesado ontem.
Mais leve amanhã.
Matéria escura.
E da nuvem vem a música:
“Leve, como leve pluma muito leve pousa, muito leve leve pousa aaa…
Na simples e suave coisa, suave coisa nenhuma, suave coisa nenhuma aaa” (2)
Neste império digital
(Leve coisa nenhuma),
A nuvem não faz sombra.
E pesa o corpo dado e fardo.
E pesa a fala simples sem sujeito,
Pois sem o que molda ou atormenta.
Das coisas obsoletas e programadas,
Na desmaterialização é a matéria que sustenta,
No digital é o átomo que salva.
A mochila pesa e me avisa
Que peso salva se for leve.
Leveza sem peso é o nada.
Me curvo com a mochila
Na gravidade insuportável
Da era do vazio que constrange.
O olhar voltado pro chão.
E as costas curvadas
Pelo peso da mochila.
Tanto trabalho, gangorra,
Tropeço, oh calculi,
E desprego da obediência.
Do peso, ufa, se faz voo.
Da queda que importa
Vem a leveza, a liberdade.
O resto é pluma,
Na nuvem,
Que não pousa!
_______
1. Professor Associado da Faculdade de Comunicação da UFBA. Pesquisador do CNPq, Coordenador do Lab404.
2. Trecho da letra da música “Amor” do álbum “Secos e Molhados”, Secos e Molhados, 1973.
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