A Florista
Vestiu uma roupa branca para enfrentar o sol. O tempo estava nublado, o mormaço era grande. Colocou a roupa de forma automática, mas depois, já no carro, pensou que o branco combinaria mesmo com o ambiente. Mas isso foi depois e, de forma nenhuma, o branco fora intencional.
O trânsito estava infernal. A cidade, caótica e sem organização, um simulacro que finge ter comando e ordem, mas que é puro improviso, estava com os semáforos sem sincronia e com alguns apagados por causa das fortes chuvas que caíram nos dias anteriores. Tudo muito precário. Ao sair de casa, foi bruscamente bloqueado por outros carros. Pensou em desistir, mas não podia. Hoje era o dia que ainda não era o dia, mas que tinha que ser o dia. Tinha que ser nesse dia.
O aniversário seria dois dias depois, e como iria viajar, não poderia passar no dia exato para ver o que não mais pode ser visto.
Contornou os entraves do trânsito, pegou rotas alternativas e foi deslizando entre um carro e outro até chegar ao seu destino. Ao sair do carro, viu que a roupa branca era mesmo uma dádiva: um calor úmido invadiu seu corpo como uma labareda. O branco amenizava o calor e lhe dava uma certa leveza. Sentia-se bem, mesmo com a alta temperatura e a luminosidade. Subiu as escadas e entrou no cemitério.
Ia andando de forma automática, meio anestesiado. Brilhava por entre as alamedas, refletindo todo o sol e refratando parte do calor.
Pensava na última vez que tinha passado por aquelas tumbas, em um momento de extrema tristeza, com Agnes ao seu lado, segurando a sua mão e conversando sobre a beleza das lápides e esculturas.
Lembrou que outra Agnes, a sua avó, também estava naquele cemitério, assim como Nair, a tia querida, que tinha sido a sua preferida na infância. Ambas tinham ali as suas moradas perpétuas. Pensou em Agnes, a avó, mas, mais particularmente e intensamente, em Nair. Não sabia o motivo.
Pensava em como ela tinha sido uma boa tia quando ele era criança, dos momentos que viveram juntos, mesmo estando em cidades diferentes, nas balas e bombons que ela lhe dava, nos passeios que ela fazia com ele em frente ao colégio Central. Ao passar por um mausoléu, leu o nome de uma outra Nair. Achou boa aquela coincidência. Não se lembrava mais onde estavam Agnes e Nair. Continuou andando pensando nas duas.
Tentou achar o lugar do túmulo de seu pai pela memória visual. Lembrava vagamente do número e da quadra, mas deixou-se levar, na certeza de que conseguira chegar sem se perder. E chegou sem muita dificuldade, depois de errar o alvo entrando em duas ruelas paralelas. Ao chegar ao destino final parou em frente à lápide e contemplou a frase: “nascer morrer renascer ainda e progredir sem cessar, essa é a lei”. A máxima é de Alain Kardec, pai do espiritismo. Ficou por alguns minutos absorto em lembranças, conversando silenciosamente com ele.
Alguns minutos depois ouve um pequeno barulho que interrompe os seus devaneios. Logo depois rompe o silêncio uma voz que diz: “quer que eu coloque algumas flores”. Olhou de relance para o vulto que passava e disse, sem prestar muita atenção e um pouco chateado com a interrupção, “não, obrigado”. Mas, segundos depois, tomado por um ímpeto incomum, gritou: “ei, por favor!”. O vulto ausente respondeu sem aparecer. O som vinha de uma outra alameda: “sim?”. A voz ecoou por entre as tumbas…
E ele disse ”sim, gostaria de flores. Você poderia colocar algumas flores aqui”. O vulto agora se materializara e ele vê uma mulher morena, com roupas simples, um chapéu na cabeça, e com as mãos e os braços sujos de um preto muito forte, parecendo petróleo. Ela se aproximou, carregando em uma das mãos um balde com água e na outra uma muda de flores simples e disse: “o Sr. quer que eu coloque todo mês ou só hoje”. Ele respondeu que era só para hoje e ela disse: “vou ali pegar terra e já volto”.
Ficou feliz por ter voltado atrás e pedido as flores. Elas seriam um presente, algo que marcaria a sua ida e o dia tão especial que estava ainda por vir. Tinha pensado em comprar flores na entrada do cemitério, mas desistiu. Procurou algum objeto ou lembranças em casa para levar, mas não achou nada interessante e desistiu também. Ficou feliz agora, com a aparição surpresa da florista e a possibilidade de enfeitar o túmulo com flores novas.
Parou em frente à lapide sob o forte sol. Lutava para se concentrar e, ao mesmo tempo, se livrar dos pequenos mosquitos que o incomodavam. Conversou silenciosamente com o pai ausente. Disse o quanto sentia sua falta, pediu desculpas por ter se afastado em alguns momentos e por ter sido ríspido com ele em outros. Foi ali dizer feliz aniversário e que era enorme a falta que ele fazia. Nesse momento, a florista, como que flutuando, pois não fazia nenhum barulho ao se movimentar, volta, passa por ele e se abaixa para preparar as flores e a terra no túmulo.
Precavida, ela não estava de branco, mas usava um enorme chapéu, tipo sombreiro, que a protegia do escaldante sol na cabeça. Ela disse: “aqui nesse lugar tudo é excessivo, o sol, a chuva, tudo. Teria que colocar outro tipo de flor para durar mais tempo. Na próxima vez farei isso”. A frase ecoou de forma estranha…
Ele não conseguia ver o rosto da florista, escondido pelo enorme chapéu. Ouvia a sua voz, calma, doce e delicada, parecendo saber do estado afetivo dele, bastante precário naquele instante. Ela falava como que querendo fazer afagos com as palavras. Falava das flores, do seu trabalho e disse para que ele não se espantasse com a sujeira dos seus braços: “estava limpando lápides de mármore preto que precisam de um produto especial, por isso estou com os braços e mãos sujos assim. Não se assuste, está bem?”. E ele disse, achando graça (haveria motivo para se assustar?): “não, não me assusto não”. Ficaram calados por algum tempo enquanto ela trabalhava.
Aquele silêncio durou alguns minutos. Ele ainda não conseguia ver o seu rosto. Só ouvia o som das suas mãos manipulando a terra, a água, as flores, a espátula roçando a pedra. Ela arrumava cuidadosamente o arranjo de flores com as mãos. Ao terminar ela disse: “pronto, está feito”. E ele disse: “quanto te devo?”. E ela disse: “quanto quiser me dar!”.
Agora ele conseguia ver partes do seu rosto, de sua boca fina e da pela morena queimada pelo sol e maltratada pelo trabalho e descuido corporal. Não era feia. Era até bonita, pensou, mas sofrida com a vida dura. Não poderia dizer a idade ao certo, mas teria por volta dos 40 anos. Não conseguia compor um todo, não via o conjunto da face. Achou que isso, ver o todo, não era mais necessário, que essa parte bastava para compor o quadro.
Ele disse então que daria uma certa quantia (maior do que se paga normalmente) e pediria para que ela passasse de novo no dia 02 de novembro, dia de finados, para renovar as flores. Ela olhou o túmulo, leu o nome e disse: “é para Ferreira? Faço sim”. Ele achou estranha a frase, como se ela o conhecesse, mas deixou para lá essa bobagem. Nesse instante, a florista olhou diretamente pra ele e ele sentiu como se ela também o conhecesse. Ficou muito tranquilo, em paz.
Agradeceu. Ele achou que podia confiar nela. Nada estava garantido, pois disse à florista que não voltaria ali no dia 2 para conferir o trabalho. Ela poderia simplesmente ficar com o dinheiro e não fazer a reposição das flores. Mas tinha a estranha certeza de que isso não aconteceria. A florista pediu licença e desapareceu.
Ele ficou mais algum tempo contemplando o túmulo, agora todo bonito com as flores coloridas: vermelhas, brancas e amarelas. Ficou feliz e disse: “tá bonito agora chefe!”
De volta pelas alamedas, lembrou de fazer uma foto com o telefone celular, agora com a lápide enfeitada com as flores. Havia feito uma foto logo que chegou, antes do aparecimento da florista. Queria uma outra agora, com as flores para comparar. Ao voltar, não achou mais a florista. Ficou com uma sensação entranha. Voltou ao túmulo para fazer a foto, mas também para saber se as flores estavam lá mesmo, para saber se tudo tinha sido real ou um sonho. As flores estavam lá e o chão ainda molhado e sujo de terra. Sim, tudo havia acontecido. Sorriu estranhamente e com um certo alívio. Tirou a foto para provar para si mesmo (e viu depois que, misteriosamente, sem ter explicação, a foto não ficou colorida, mas totalmente azul)! Não via mais a florista.
Andou um pouco mais, chegando ao fim do cemitério, um gramado (provavelmente uma área para expansão) dando para uma paisagem marrom de tijolos de casas e prédios de uma desoladora favela. Nada da florista. Decidiu voltar.
Ao virar para retomar o caminho da alameda que daria para a saída do cemitério, viu ao seu lado a florista. Se assustou com a aparição. Riu e suspirou para retomar o fôlego. E, ao olhar para ela nos olhos pela segunda vez, com alegria e uma incomum tranquilidade, perguntou: “Você não vai se esquecer de repor as flores, não é mesmo?”. E ela disse com uma voz tenra, arrastada, reconfortante e quase suplicante: “não, não vou não”. E ele olha para ela e pergunta: “Qual é o seu nome”. Ela ri, olha no fundo dos seus olhos e diz: “Nair!”