Gazeta do Povo, Caderno G, 06/03/2012
Dou muitas entrevistas, mas é raro os jornalistas serem fiéis ao que digo. O jornalista Rafael Costa da Gazeta do Povo de Curitiba fez um excelente trabalho. Abaixo reproduzo a entrevista que faz parte de um número especial sobre “As novas formas de ver, escutar e pensar”. Vale conferir o caderno.
Quando as máquinas dizem o que importa
Publicado em 03/03/2012 | RAFAEL RODRIGUES COSTA
Você está trocando mensagens com amigos e, para sua surpresa, os anúncios publicitários que surgem no canto da tela têm a ver com a conversa. Entra em um site de livraria e recebe sugestões que estão relacionadas àquilo que andou lendo e pesquisando nos últimos tempos. Outro site diz que, se você gostou do último disco de Chico Buarque, talvez também vá gostar do novo do Lenine. Tudo automático. É a internet, que sabe cada vez mais sobre você, e quer mostrar a coisa certa na hora certa.
Essa personalização é possível graças aos agentes inteligentes – softwares que reconhecem os padrões de comportamento dos usuários e se adaptam ao feed-back que recebem da massa de internautas conectados. São os chamados sistemas de recomendação, que cruzam dados que não param de chegar e conseguem resultados cada vez mais sofisticados. Os portais de busca também se utilizam deles para ficarem mais eficientes, e assim facilitarem a navegação no dilúvio informativo da internet.
Mas a presença desses sistemas em um número crescente de serviços levanta questões importantes para pensadores da era digital. A máquina filtra informações e torna invisível o que, supostamente, não interessa aos usuários. Além de armazenar informações pessoais à revelia das pessoas – que podem prejudicá-las no futuro –, não seria isso muita responsabilidade para robozinhos incapazes de demonstrar bom senso?
Mediação que isola
“Essas recomendações são interessantes, mas acabam com uma possibilidade que é a grande riqueza das redes e do ciberespaço: o encontro de coisas que não se está procurando necessariamente”, diz o professor da Faculdade de Comunicação da UFBA, André Lemos, que desde 2000 alerta para o fechamento da web por iniciativas como a dos portais, que “aprisionam” os usuários com sua diversidade de serviços, e os desencoraja a “flanar” pela rede.
“É a experiência da livraria e da biblioteca. Você vai procurar um livro específico. Mas o interessante é passear pelas prateleiras, ver algo que não estava procurando e se surpreender. A internet seria uma livraria gigantesca, onde você encontra coisas as mais diferentes possíveis. Mas chegamos a uma era em que essas indicações personalizadas podem minar, no futuro, essa possibilidade de encontrar coisas ao acaso”, diz Lemos.
Com softwares dizendo o que é relevante, a vantagem da web em relação ao modelo de mídia anterior – em que os responsáveis por fazer a curadoria da informação eram os meios de comunicação de massa – fica em xeque. “Não estou dizendo que a diversidade vai acabar, prevendo um mundo cinza e homogêneo”, diz Lemos. “A questão é o uso que se vai fazer disso. A potência transformadora está sempre aí.”
“Somos artificiais por natureza”
Há culto à tecnologia em toda parte. Seja pela sedução de produtos sempre mais mágicos que seus anteriores, seja pelas promessas da ciência, que chegam a falar em imortalidade. Mas basta lembrar de famosas distopias do cinema, como o clássico Metrópolis (1927), passar pelos robôs malucos de 2001 – Uma Odisseia no Espaço e Blade Runner – O Caçador de Androides e chegar à febre da trilogia Matrix para atestar a relação de medo e fascínio que habita o imaginário coletivo e que, volta e meia, surge no cotidiano da vida nos anos 2010.
Gente que teve de subir e descer muita escada atrás de livros em bibliotecas anda preocupada com o comportamento aéreo de jovens que têm, na palma da mão, ferramentas poderosas como o Google. Cientistas divididos entre otimismo e pessimismo: o hipertexto instiga a inteligência ao permitir uma linguagem multilinear, como afirmam entusiastas na linha do filósofo francês Pierre Lévy? Ou enfraquece processos cognitivos e nos tornam mais superficiais, como sugere Nicholas Carr? Por via das dúvidas, há quem prefira temer a tecnologia.
“Isso existe desde a antiguidade”, diz o professor da Faculdade de Comunicação da UFBA e pesquisador do CNPq André Lemos. De acordo com o acadêmico, a relação conflituosa existe desde os tempos de Aristóteles e Platão. “Nos mitos, a técnica era sempre ensinada pelos deuses. Eles ensinavam a usar as tecnologias como a agricultura, o fogo. Mas sempre que alguém tentava brincar de deus, vinha uma punição”, explica. “Essa relação ambígua continua hoje. E os objetos continuam sendo mágicos. Usamos computadores, mas geralmente não temos ideia de como funcionam”, diz.
Embora a própria tecnologia da escrita possa ser considerada originária de alterações nas capacidades mentais, como o pensamento racional e analítico, o e-book já é visto com desconfiança em relação ao livro de papel, mesmo que as únicas mudanças digam respeito à mobilidade. “O medo e o fascínio são mesmo estruturantes da nossa relação”, diz Lemos.
Para alguns, a solução parece ser o afastamento. Mas, de acordo com Lemos, não faz sentido fugir da técnica. “Não há o homem sem essa dimensão”, diz o pesquisador. “O primeiro da nossa espécie foi o Homo habilis. A manipulação do artefato mudou o córtex cerebral. Transformamos a natureza para habitar. A dependência da técnica é constitutiva do homem. O que acontece é que estamos vivendo o ápice dessa transformação”, diz Lemos.
Risco
Por outro lado, o risco da dependência realmente existe. Há uma sobrecarga de novos dispositivos sendo lançados a todo momento, e eles estão cada vez mais presentes no cotidiano. O ritmo e a quantidade em que surgem novas informações nestes aparelhinhos têm contornos verdadeiramente neuróticos. E, embora seja interessante que a dependência hoje seja em relação a dispositivos de comunicação – o que remete a uma dimensão social, ao contrário da lógica produtiva dos produtos de tempos passados –, é preciso maneirar, de acordo com Lemos. “Não podemos ficar reféns dos artefatos”, diz.
“Nosso perigo não é a técnica. O que temos de fazer hoje é achar o ponto de recuo – nos desconectarmos, pensarmos criticamente. O que vai definir o sujeito não é o seu afastamento dos objetos para achar a pureza interior. Mas sim, como é que nos vinculamos às coisas” diz o pesquisador. “A forma como nos relacionamos com estas tecnologias é o que define a nossa dignidade.”
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