Déjà Vu, infantilização da Cultura e “Cadê o Celular?”
Como prometido em outro post , vou comentar três “ciberprogramas” da televisão paga exibidos essa semana: “Gordo Viaja” da MTV, “Retrato Celular” e “11 Câmeras”, ambos veiculados no canal Multishow. Vou tentar rapidamente (e esse post será aprofundado em artigos futuros), mostrar como os programas insistem no já batido formato Big Brother, na “infantilização da cultura” ;-)) e na ausência do dispositivo fetiche, o celular. Vejamos.
No programa “Gordo Viaja” da MTV, João Gordo viaja pelo mundo com um “Nokia N95” – que é telefone, câmera, vídeo, GPS, telefone, tem acesso as redes Wi-Fi, Bluetooth e Celular – filmando tudo. Mas, por incrível que pareça, o celular não existe. Ele é limitado, perdendo toda a sua riqueza, ao uso como câmera fotográfica e de vídeo. Não há rede, não há conexão, não há relação com o outro (características mundiais do uso desses dispositivos hoje); nao há SMS, não há localização por GPS, não há acesso a internet via Wi-Fi para ampliar as informações, não há trocas por Bluetooth…nada! O dispositivo é extirpado de toda a sua versatilidade para ser apenas uma câmera portátil em um programa sem informação, cujo único atrativo é o engraçado João Gordo. O “brand” celular é uma estratégia de marketing, em um programa bem infantil.
O programa “Retrato Celular”, série com pessoas comuns utilizando um telefone celular por uma semana, segue a mesma infanitlização e o mesmo tipo de uso dos celulares do “Gordo Viaja”. O dispositivo não é mais do que uma câmera sem a potência da comunicação (SMS, Internet, fotos, GPS). Nem para usar como telefone ele serve. Na série, vemos apenas a exposição da vida privada com um câmera na mão. Todos aparecem para o grande público; adultos meio infantilizados por vidas sem graça: Uma gaúcha de Porto Alegre cantora de rap, um pitbull carioca e uma patricinha gaúcha (por que tantos gaúchos???) loura de Caxias que não saem da casa das respectivas mães, um engenheiro de Palmas, formado, mas que vive como uma criança em uma “república” em Ouro Preto, um nerd que faz sites para adolescentes…Bom, um pouco fora desse padrão, um casal de lésbicas, uma advogada paulistana, um grafiteiro, e por aí vai. Na série, pelo menos até aqui, nada acontece a não ser a banalidade das vidas comuns sendo mostradas no celular como uma câmera sem graça. Se fosse qualquer câmera portátil (super 8, mini Dv, VHS) o efeito seria o mesmo. Mais uma vez o celular é apenas uma marca, um efeito de marketing. Cadê o celular? Para uma análise do “Retrato Celular” vejam também o ensaio “Instantâneos sobre Retrato Celular” de Cezar Migliorin e Ilana Feldman (via Dispositivos de Visibilidade…).
O terceiro é último dos “ciberprogramas” é o 11 Câmeras, série canadense de 2006 que estreou ontem no Multishow, mostrando a vida de pessoas que se relacionam por “webcams”. É, na minha opinião, o melhor entre as séries analisadas aqui. Retoma a discussão de voyerismo, de visualização da vida privada, mas de uma forma mais interessante, menos infantilizada e mais ousada em relação à estética, embora não seja nada excepcional. É interessante a variação da câmera em closes, ou mostrando os “desktops” dividindo as duas telas onde as pessoas conversam, ou os closes e os “volets” dos diálogos. A série mostra, me parece, a maior difusão das “webcams” nas comunicações interpessoais. Elas ganham uma dimensão mais quotidiana já que passam a serem embarcadas nos computadores (os novos laptops já vem com esse dispositivo), e os programas de relacionamento mais populares têm esse serviço adionado (MSN, iChat, Skype, entre outros). Realmente as pessoas passam a usar, como nunca, as webcams e a série mostra isso. O assunto das “webcams” já foi bastante discutido, inclusive no Brasil, e não vamos retomar as discussões aqui (quem tiver interesse pode ver o meu artigo de 2002 sobre o tema aqui.
Concluindo, podemos dizer que, pelo lado da teoria da comunicação, há uma remediação evidente das mídias digitais nas séries e emissões da TV, ou seja, o meio massivo analógico que é a TV (segmentada ou aberta) emula o uso de dispositivos digitais móveis, como laptops com “webcams” e telefones celulares, mostrando o processo chamado por Bolter e Gruzin de “remediation” (e que chamei em outro artigo de “reconfiguração”).
Pelo lado da subjetividade e da sociedade do espetáculo, vemos como o meio de massa, a TV, continua a insistir na fórmula do voyerismo, na visão do outro como objeto do olhar curioso e desejante, no reforço da sociedade do espetáculo, na vigilância e contrôle, reproduzindo programas tipo BB, só que utilizando agora as mídias digitais, como no “Retrato Celular” ou no “11 Câmeras”. Não podemos negar que há, efetivamente, um crescimento de processos de “territorializações” (monitoramento, controle, vigilância) que se generalizam na cibercultura como prolongamento da sociedade do espetáculo. Acho que a TV, nessas séries, busca reproduzir, com as novas mídias, um formato que vem dando audiência e levanta discussões. No entanto, questões mais sutis de contra-vigilância ou de questionamento da sociedade do espetáculo, não têm espaço nessas séries. E a própria forma “série” deve ser pensada aqui como formante desse tipo de discurso.
Por último, uma conclusão sobre os dispositivos. Como vimos, na série “11 câmeras”, as “webcams’ são olhos eletrônicos que nos permite, através de um outro olho eletrônico, ver o outro com essa invasão panóptica (vejo o que estão vendo nas “webcams” pela minha telinha da minha TV, em um efeito de espelhos em cascata, fractal, interessante). Trata-se do olho eletrônico artificial simulando, ou emulando, o nosso olhar do dia a dia, que vê o outro, que se fixa em algo diferente, que “olha pela janela”, que pára para ver um “acidente”. Já o celular, como no “Gordo Viaja” e no “Retrato Celular”, é apenas uma câmera e não um “Dispositivo Híbrido Móvel de Conexão Multirede” – DHMCM (ver meu artigo recém publicado sobre esse assunto no link artigos desse Carnet). O celular aqui é apenas uma câmera de baixa qualidade, um fetiche, um instrumento de marketing, aliás muito bem construído com as publicidades dos intervalos sobre, óbvio, telefones celulares e “smart phones”. Nas séries, os telefones não são nem “smarts”, nem “telefones”. Eles desaparecem. Aqui não há contato com o outro, não há mobilidade informacional recebendo e emitindo informação, não há uso de localização ou de mapeamentos…Nesse sentido a série “24 Horas” é muito mais interessante, mostrando um uso polivalente dos dispositivos móveis.
Ainda faltam, nessas emissões, aparecer o dispotivo em sua potência híbrida e comunicativa, irem além da fácil espetacularização, exposição e voyerismo, e tentar escapar, de uma vez por todas, da infantilização televisiva da cultura massiva.