Escrevi esse texto em fevereiro de 2002, após o Carnaval (ele foi publicado no jornal Província da Bahia). Acho que continua atual. O carnaval aqui no Brasil, desculpem os antropólogos, não inverte nada, não sublima nada. Ele apenas teatraliza a vida de todo o dia. E isso não é necessariamente bom ou ruim: A vida de todo dia, o carnaval. Falo de Salvador, mas isso vale para todo o Brasil.
Carvanal
André Lemos
Fim de carnaval e a vida começa a retomar a normalidade. A cidade pára. Falam de TAZ, de reversibilidade do quotidiano e todos têm um pouco de razão. Trata-se, evidentemente, de uma zona de autonomia temporária e de uma quebra nos papéis rígidos quotidianos. Mas também há exageros, já que nem tudo muda realmente e uma nova ordem se instala no caos. Na realidade, aqui em Salvador, só confirmamos a norma e a organicidade da sociedade (e isso não é necessariamente nefasto.)
Primeiro, há a ordem sócio-policial que tenta administrar a bagunça: fecha ruas, cria espaços alternativos, organiza a circulação de trios e blocos, monta centros médicos… O sistema estabiliza na crescente entropia da festa.
Segundo, a ordem psicossocial, em sua maioria, não é tão drasticamente invertida. Na realidade acho que não há inversão nenhuma. Quem conhece e mora em Salvador sabe que as pessoas não são tão diferentes assim no seu dia a dia. Aqui o cliche funciona: o carnaval é uma forma de vida (e isso não é necessariamente bom…).
Parece que o carnaval apenas deixa que elas extravasem, sem culpa e sem muita vergonha, o que elas são sempre, em maior ou menor grau. O excesso de espaço (simbólica e fisicamente falando), o excesso de alegria (com simpatia e também super-simpatia que vira melancolia), o excesso de fé e misticismo (que deixa um ar zen e complacente, sem ser a tão propalada preguiça) são exemplos da vida em Salvador antes e depois do carnaval.
Assim é o carnaval em Salvador (e só falo desse lugar), ao mesmo tempo deregramento mas também confirmação do que se é, consagração da norma e do instituído. Salvador é tão bizarra que ela escapa da visão hegemônica do carnaval. E escapa estranhamente, já que não é inversão do dia a dia ou desordem, como muitos afirmam ser o carnaval, mas confirmação do dia a dia como carnavalização. Não é catarse da dor do dia a dia já que parece não haver dor. Não é dor acumulada e espelida como vômito festivo, mas a própria vida em sua celebração plena.
Se não há dor, se não há tristeza… Assim, só cabe celebrar o que se é (e não falo sem saber das mazelas da sociedade soteropolitana, mas de uma forma de ser, de um imaginário social que constrói a vida local e coletiva). Não há inversão nem quebra da ordem se não há do que se desvencilhar. Não há, tampouco, do que se entristecer ou deprimir, já que a alegria é um dever ser aqui. A alegria, essa insuportável alegria que nos joga na ineficiente e, às vezes, dura necessidade da simpatia incondicional.
A existência carnavalizada de Salvador só veste sua própria máscara no carnaval, capitalizada por políticos, marketeiros, líderes comunitários, músicos e outros artistas, professores universitários, vendedores de cerveja e de acarajé que reivindicam e gozam, todos, na tal baianidade (que não é da Bahia mas de Salvador).
Parece que a existência carnavalizada, tipica do quotidiano baiano, só é, por assim dizer, tranformada em uma espécie de carnavalização da existência (e isso não é bom, nem mau). Nesses dias de folia, Salvador é o que é sempre, só que parodizada, exagerada, “purpurinada” e “vitaminada”.
Mas a festa acabou. A carnavalização da existência se foi e a existência carnavalizada apenas recomeça, para o melhor ou o pior.