Na cidade de rotatórias e de largas avenidas, ligando nada a lugar nenhum, vê-se terra vermelha nas calçadas e poucas casas ao lado das vias, casas baixas, acanhadas, como se estivessem se escondendo para não atrapalhar a força do vazio horizontal. Nessa cidade, o olhar perde-se procurando algo. Olha-se para todos os lados, mas nada é visto, nada bloqueia ou detêm esse olhar curioso em busca de algum anteparo de fixação. Procura então alguma verticalização, mas só encontra a horizontalização do vazio.
Essa cidade espalhada era para ter a forma de um avião, como a Capital, mas é a forma da cruz que se impõe pelas duas largas avenidas que a cruzam de Leste a Oeste, de Norte a Sul, a J.K. e a T. S., respectivamente. Uma cidade adolescente de apenas 19 anos. Tem-se a visão de um cerrado de uma extensão plana vertiginosa. O horizonte descortina-se no vazio com algumas montanhas ao fundo, e um imenso lago artificial de centenas de quilômetros, fruto de uma hidrelétrica privada, inunda a janela do quarto…
Pode-se pensar na desterritorialização absoluta, na planície de nômades que, aliás, são todos os habitantes dessa cidade, vindos de vários lugares, menos daqui mesmo. Um “lugar” sem lugar, um território sem terroir, um mosaico de culturas que insiste em se formar no imenso calor do norte do país. A sensação é de espaços de fuga, de culturas em fuga, tentando construir novas territorializações (um jeito de ser, de comer, de vestir, de falar), mas que ainda não se enraizaram por completo. O vazio abre possibilidades e as possibilidades promessas de um futuro de expansão, do preenchimento, da realização. Para um estrangeiro que a observa, não há sotaque, tipo físico ou outros signos que possam identificar seus “moradores-nomades-nativos”. Todos são de algum outro lugar, de lugar nenhum.
A cidade é um lugar de passantes que estão ficando, que circulam imóveis em veículos. Quase não há pedestres, só carros em rotatórias, alguns ônibus e muito, muito espaço para todos os lados. Avenidas terminam em rotatórias que ligam outras avenidas que dão em novas rotatórias que ligam outras avenidas que dão em novas rotatórias que ligam…a cruz. Carros e algumas bicicletas sem ciclovias serpenteiam entre “mobiletes”, gastando os pneus entre retas e os círculos obrigatórios das rotatórias.
E o sol quente implacável coloca as pessoas em bolhas refrigeradas em todos os ambientes (casa, trabalho, lojas, restaurantes, carros…). Não há clima, só calor lá fora e climatização aqui dentro. Há movimento entre pontos da planície, entre os interstícios, mas não a deriva ou a errância, apenas o deslocamento para chegar logo em outro ponto. Cada ponto luta para apagar o interstício e se reconstruir como um outro ponto.
E não há centro. O “centro” nada mais é que mais um eixo interligado por mais rotatórias que abrem-se para novos eixos: o ponto de intersecção da cruz. O centro é uma apenas uma denominação geodésica (é o centro do país) onde há o Palácio, do governo, mas não há centralidade aparente. É apenas uma ilusão construída para dar equilíbrio e tranqüilidade simbólica, para evitar que as pessoas se percam na vastidão horizontal e não voltem mais, como um avião que, seguindo em linha reta, não contornado a uma altura constante a circunferência da Terra, pode perder-se para sempre no espaço sideral. O centro é apenas um pólo de aglutinação imaginário, um centro gravitacional discursivamente construído. Uma forma de luta contra a falta de gravidade espacial. O centro é aqui uma força de atração imaginária, que dá peso e mantêm o equilíbrio simbólico.
E nessa cidade sem centro, cidade da cruz e do futuro, escrevo a partir de um território informacional, efêmero, de uma conexão wireless, despregado de fios e cabos, livre para vagar na vastidão do espaço da cidade e do ciberespaço, para despregar do peso da gravidade do mundo constituído, centralizado e ocupado das outras cidades.
E na vastidão da planície dessa cidade pode-se, efetivamente, sonhar com o futuro.
Disse muito, André. Uma bela cartografia de uma bela-estranha-inquietante cidade.
Eu diria algo a mais: lá, o céu é o maior do mundo, notou?
Caro Rogério, obrigado. Sim, um vasto e belo céu azul…
um belo texto.
Andas Inspirado, meu caro André