Artigo no Caderno de Sábado do Jornal Correio do Povo, Porto Alegre, Sábado, 22 de fevereiro de 2020.
Melhores livros lidos em 2019
André Lemos é escritor, professor titular da UFBA e pesquisador do CNPq.
Consegui ler trinta livros de ficção nesse ano que passou. Sou, como diz um amigo brasiliense, um voraz leitor desinteressado e a minha escolha aqui elencada não poderia deixar de ser idiossincrática. Muito do que deixei de fora é excelente literatura e, certamente, poderia estar na sua lista, leitor (H. Murakami, P. Auster, R. Lísias, A. Hampel, S. Sant’Anna, I. McEwan, Amós Oz, ou Chico Buarque, para citar alguns). Os pequenos comentários sobre as obras aparecem na ordem cronológica das leituras.
Comecei o ano com A Uruguaia, do argentino Pedro Mairal. Fui transportado para o sul do continente, Montevideo, para testemunhar uma história de amor conturbada e dramática, em uma trama banal que vai ficando cada vez mais complicada. Devorei o livro. Depois, fui surpreendido pela força de A vegetariana, da coreana Han Kang. Uma mulher torna-se vegetariana, atormentada por sonhos e decide se transformar em uma árvore. Ambiente soturno, pesado, angustiante. Um romance perturbador, descrevendo uma transformação assustadora.
Até hoje gostei de tudo que li do irlandês John Banville. Não foi diferente com O livro das evidências, confissões de um improvável assassino em Dublin em mais uma boa trama policial: um Banville em todo domínio do seu universo. Da Irlanda fui transportado para outra ilha, Cuba, com a Transparência do tempo, do jornalista e escritor cubano Leonardo Padura. Um imbróglio para ser resolvido pelo implacável detetive Conde, escrito de forma direta e cativante nos levando por igrejas, comerciantes corruptos, idade média, Espanha… Gostei das passagens que descrevem a Havana de hoje de maneira realista, sem exotismos.
Monica vai jantar, do baiano Davi Boaventura, é um livro sobre a temática da imobilidade, escrito sem nenhuma pontuação. Acompanhamos, em fluxo da consciência, a tentativa da perturbada Monica de chegar a um jantar da firma. Sol na Cabeça, do carioca Giovani Martins é, como o título indica claramente, um sol de 40 graus do Rio de Janeiro na moleira: uma porrada. Escrita direta, viva, sem firulas, mostrando a realidade dos morros cariocas.
Em A imensidão íntima dos carneiros, do paulista Marcelo Maluf, entramos em outro registro, o de uma escrita poética, navegando por sonhos e memórias regidos pelo medo. Muito bom. Memórias da infância é também o tema de Formas de voltar para casa, do chileno Alejandro Zambra. Um excelente passeio pela suas recordações de criança no Chile em plena ditadura militar, pondo em discussão os destinos da sua vida atual como escritor.
Do dublinense e prêmio Nobel Samuel Beckett, li Malone Morre, o segundo da trilogia composta por Molloy e O Inominável. Malone, confinado em um quarto sem saber como ali chegou, conta histórias para passar o tempo antes do desfecho final. Um dos melhores livros do autor, na minha opinião. Ainda no registro do questionamento sobre a existência, a japonesa Suraya Marata discute a submissão da mulher no Japão atual em Querida Konbini. A personagem central questiona sua humanidade, sentindo-se parte de uma loja de conveniências (“não era eu quem estava falando, era a própria konbine. Eu não passava de um oráculo, transmitindo o que me era reveladoâ€). A argentina Silvina Ocampo escreve contos perturbadores em A fÚria. Não sou fã de contos, mas esses são muito bons e Ocampo, leitura obrigatória.
Me surpreendi com Sobre os ossos dos mortos, da prêmio Nobel de literatura de 2019, a polonesa Olga Tokarczuk. Um livro para problematizar a relação humanos-animais sob a ótica de uma idosa astróloga com uma personalidade ímpar. Um romance que pode ser visto como um alerta para a entrada da humanidade no Antropoceno.
Foi isso em 2019.
Antecipando 2020, li até agora quatro livros muito bons. Destes, certamente, todos estarão na minha lista dos best no final do ano: Acordei Negro, do editor desse caderno, meu amigo colorado, Juremir Machado das Silva. Um personagem branco acorda negro, sofrendo no dia a dia as mazelas de ser negro no Brasil. Um livro ao mesmo tempo leve e complexo, colocando em discussão a espinhosa noção de “lugar de falaâ€. Ainda nesse tema, e com outro autor gaÚcho, Marrom e Amarelo, de Paulo Scott, é excelente. Uma visão franca e direta sobre racismo, em meio a um fait divers envolvendo juventude, militância e assassinato em Porto Alegre.
Em A chave de casa, a portuguesa Tatiana Salem Levy conta a história de uma personagem judia de origem turca que busca refazer seu passado, mesclando lugares e temporalidades em busca do sentido da sua identidade. O objeto aglutinador é uma chave deixada pelo avô. E, por Último, Enterre seus mortos, da carioca Ana Paula Maia. Um livro sombrio, frio, soturno, desértico, como a própria morte. Um recolhedor de animais mortos, sem muitos sentimentos, e um padre excomungado compartilham o dia a dia em um mundo repleto de acidentes, abutres e muitos mortos, humanos e não humanos. Forte!