Memória e Proust na Cultura Digital

Meu artigo hoje no jornal O Povo, de Fortaleza, no caderno Vida & Arte especial sobre Proust e Memória.

Apagando os dados, ativando a memória

O POVO 17/11/13

VIDA & ARTE

Apagando os dados, ativando a memória

Proust alerta para “as faces sem realidade” pintadas pela memória voluntária – ativada excessivamente em tempos de cultura digital

André Lemos
ESPECIAL PARA O POVO

“Para mim, a memória voluntária, que é sobretudo uma memória da inteligência e dos olhos, não nos dá, do passado, mais do que faces sem realidade; mas se um cheiro, um sabor encontrados em algumas circunstâncias totalmente diferentes, despertam em nós, à nossa revelia, o passado, passamos a sentir o quanto este passado era diferente daquilo que acreditávamos lembrar, e que nossa memória voluntária pintava, como os maus pintores, com cores sem realidade” (Proust)

Memória é ativação complexa de rastros. Proust preferia a memória involuntária, para ele mais verdadeira e fiel à realidade. Memória e rastros não são naturais, mas inscrições produzidas e percebidas por determinadas condições de existência: uma pegada na areia, como índice de uma ação; uma fórmula matemática, apontando para evidências de algo que ainda não é visível; a marca de uma partícula em um acelerador, como o “bóson de Higgs”; uma fotografia; uma informação gravada em memórias eletrônicas, como no Facebook, Twitter, Foursquare, Google…

Hoje, as possibilidades de rastreamento e de ativação externa da memória são bem maiores do que no começo do século XX. A cultura digital, produtora de controle e monitoramento informacional, multiplica os instrumentos de inscrição eletrônica (quando usamos um celular, um cartão de crédito, as redes sociais…). Ela é uma megamáquina de produção de memória voluntária, de luta contra o esquecimento. Controle de informação é lembrança, ação contra a desordem e a indiferenciação. O problema hoje é a ampliação de formas de ativação da memória voluntária, a mais perigosa e enganadora já que revela, para Proust, “faces sem realidade”.

Tudo é guardado. Nada mais é esquecido. Mas esquecer é fundamental. Lembrem do conto de Borges, Funes, o Memorioso, no qual o personagem é atormentado pela memória. Ele não consegue se distrair do mundo, nem pensar, pois lembra de tudo nos mais ínfimos detalhes, o tempo todo. Como diz Borges: “suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos”. Ele está preso nas garras de Mnemosine, deusa grega que “faz lembrar”, que “faz pensar”. Mas Funes não consegue mais pensar. Lembrar é bom, mas não de tudo o tempo todo.

Proust realiza no Em Busca do Tempo Perdido um exercício estilístico de resgate das lembranças que o constituem a partir dos rastros encontrados de forma involuntária, e não dos dados históricos guardados em um arquivo. Trata-se não apenas de reencontrar o tempo perdido, mas também o seu lugar no mundo. Saber sobre o passado é saber onde se está e como nos constituímos. Georges Poulet defende esta tese, mostrando, sobre a obra de Proust, que “o que é verdadeiro para o tempo, também é válido para a extensão”. Ou, como diz Beckett sobre o escritor francês, “as leis da memória estão sujeitas às leis mais abrangentes do hábito. O hábito é o acordo efetuado entre o indivíduo e seu meio, ou entre o indivíduo e suas próprias excentricidades orgânicas, a garantia de uma fosca inviolabilidade, o pára-raios de sua existência”. É importante voltar no tempo para pensar nosso lugar no mundo.

Estamos nos tornando o personagem de Borges, já que podemos, querendo ou não, nos lembrar de tudo. Mais ainda, somos forçados a tudo lembrar. Você esqueceu do que fez na escola? Filmaram e colocaram no YouTube; do que disse no trabalho? Registraram no Facebook e no Twitter; das infrações de trânsito? O computador central sabe; da quantidade de gordura que ingeriu no ano passado? A seguradora sabe e vai cobrar caro na renovação do seu plano de saúde…

?A rastreabilidade eletrônica se expande e está acessível a todos. O lado positivo é o acesso global aos bens simbólicos produzidos pela humanidade. Mas o nosso problema é que podemos ser forçados a tudo lembrar. Se é assim, torna-se necessário a criação de mecanismos de apagamento dos dados, de esquecimento também compulsório dos rastros deixados em sistemas eletrônicos (técnica e juridicamente), para inibir os excessos da ação coletiva da memória voluntária. Devemos poder buscar as informações que nos concernem e deletá-las, se assim o desejarmos.

Mecanismos de esquecimento são, e sempre foram, vitais para a constituição do sujeito e do social, bem como para potencializar surpresas da memória. O desafio do século XXI é o desafio da memória sob o signo nietzschiano do esquecimento (talvez agora programado em algoritmos e garantido por lei). Privacidade, espionagem, vigilância, Big Data, computação nas nuvens, internet das coisas…Tudo isso tem a ver com os desafios da memória e do esquecimento atuais. Seria o apagamento dos dados uma forma de libertação das origens para a abertura plena ao futuro, como queria Nietzsche, e ao resgate surpreendente dos nossos tempos e lugares perdidos?

André Lemos é professor associado da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisador nível 1 do CNPq.

http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2013/11/16/noticias…nalvidaearte,3163553/apagando-os-dados-ativando-a-memoria.shtml