A Metareciclagem e a Gambiologia buscam a apropriação de objetos técnicos com fins de reaproveitamento, reciclagem e ressignificacão, desempenhando, ao mesmo tempo, funções sociais, de inclusão, artísticas, com uma estética “cyberpunk”, e política, contra o desperdício e a espiral da obsolescência programada da sociedade industrial moderna. Vou propor aqui pensar os princípios da Gambiologia, ou a ciência das Gambiarras.
Uma gambiarra é resultado de função ressignificadas fazendo com que dispositivos técnicos possam fugir de suas hipertelias e ganhar outras funcionalidades. Busca-se que eles sejam, por assim dizer, abertos ao mundo, negociando com outros objetos e com a natureza ambiente. A prática da gambiologia se situa menos na engenharia (científica, industrial, especialista, homogênea, padronizada, incapaz de dialogar com a natureza a não ser submetendo-a a suas funções e operações), e mais na duração, na lentidão, no imperfeito e aberto trabalho de artífices e artesãos.
A gambiarra propõe reciclar, em vários níveis, instrumentos tecnológicos (mas não só os de ponta). Mas, o princípio é artesanal, antigo. Vou rapidamente sustentar essa hipótese: a gambiarra, na sociedade da informação, alia tecnologias de ponta com processos de trabalho artesanais constituindo-se como uma prática que poderíamos chamar de “cyberpunk pós-moderna”.
A prática do artífice pode ser considerada como uma ação de trabalho manual, persistente, lento e imperfeito (não homogêneo ou em série) sobre os objetos técnicos. Essas características são mesmo reivindicadas e valorizadas como parte fundamental do métier do artesão, e isso desde a era medieval até hoje: ir trabalhando aos poucos, buscando a perfeição em algo que nunca será perfeito, insistindo nas diferenças entre cada elemento de uma mesma espécie, como se assim pudéssemos apreender o espírito de cada objeto, sendo também um auxiliar do desenvolvimento próprio espírito do artífice. A idéia de autor não existe ainda e a oficina, ou o ateliê, é fruto de um trabalho coletivo e cooperativo coordenado pelos mestres-artesãos. Fazer um objeto é fazer a si mesmo. A imperfeição é sinal da “humanidade” da cultura material.
O desenvolvimento da cultura material, tão desprezada, é aqui vista como um forma de entender o homem e a instituição de seu lugar no mundo. R. Sennett em seu “O Artífice” elenca algumas qualidades desse trabalho: o engajamento total em uma atividade prática; a busca da qualidade, que não é a padronização que virá mais tarde com a máquina e a indústria; a impessoalidade, onde a idéia de autor, moderna, ainda não existe; a valorização do trabalho pela repetição, hoje vista como enfadonha, mas que aqui se caracteriza como um exercício da mão e do cérebro na constituição de um conhecimento tácito (como no esporte ou na música). Podemos ver, como afirma o próprio Sennett, no trabalho de desenvolvedores de software, especialmente o Linux, mas também na bricolagem na constituição de blogs, nas redes sociais criadas por idealizadores, ou no trabalho de metareciclagem algo muito próximo da prática dos artífices medievais.
Todos os elementos estão presentes: o engajamento, a busca da qualidade pela diferenciação e a imperfeição (e a valorização estética desta), a impessoalidade que insiste em trabalhos coletivos, e não autorais, e o trabalho exaustivo e repetitivo, tentando chegar a uma perfeição que se mede caso a caso. Obviamente, há diferenças, já que estamos em uma sociedade industrial avançada. As práticas abertas e colaborativas das gambiarras “high-tech” da cibercultura não são práticas que se voltam para um idílico passado remoto. Antes, elas associam altas tecnologias e práticas ancestrais voltadas para o presente, para o questionamento da hiperespecialização, da propriedade e do direito de autor. Aqui, a Gambiologia muito se aproxima dos artífices, mas sem romantismo.
Vemos em projetos como o Metareciclagem uma reconfiguração de práticas (que afetam a grande indústria dos games à robótica) que poderíamos chamar de “cyberpunk pós-moderna”: une arcaico e futuro, improviso e imperfeição, crescimento pessoal e desenvolvimento material, qualidade como um fim e o engajamento coletivo na transformação da sociedade tecnológica, sem negá-la. É futurista, arcaica, mas ancorada no presente.
Acredito que essa possa ser uma forma de leitura da Gambiologia.
Gostei do texto André, eu sinto que o que fazemos é também uma forma de criticar, satirizar o consumismo exacerbado e o excesso de materiais. Uma coisa que eu ia falar na palestra, mas acabei me esquecendo é a respeito da COINCIDÊNCIA INDUSTRIAL, termo que me foi ensinado pelo amigo designer e professor Eliseu. De qualquer forma está aí, gosto muito desse termo e gostaria de compartilhar. Abraço !