WikiLeaks

O terceiro artigo será sobre o Wikileaks. Estou editando um número especial da Revista Contemporanea sobre o tema e convoco os interessados a enviarem artigos. Aqui está a chamada: “WIKILEAKS – CIBERCULTURA E POLÍTICA”, EDITOR RESPONSÁVEL – ANDRÉ LEMOS. Calendário: Recebimento de artigos: até 01 de maio; Resultado da seleção: 30 de maio; Trabalho de revisão: 01 a 30 de junho; Publicação da Revista: 15 de agosto.

Vou colocar aqui algumas reflexões sobre o caso e explorar rapidamente (com mais profundidade no artigo) um ponto ainda pouco desenvolvido, na minha opinião: a do interesse público, a partir das obras de Dewey e Lippmann.

Algumas Visões:

A relação do “affaire Wikileaks” com o ciberativismo e hacktivismo foi explorado por autores com Lanier (“The Hazards of Nerd Supremacy: The Case of WikiLeaks“), em um texto conservador e polêmico na The Atlantic. Para Lanier, a revelação do sergredo é um perigo para a democracia:

“Too much power can accrue to those we have sanctioned to hold confidences, and thus we find that keeping a democracy alive is hard, imperfect, and infuriating work. The flip side of responsibly held secrets, however, is trust. A perfectly open world, without secrets, would be a world without the need for trust, and therefore a world without trust. What a sad sterile place that would be: A perfect world for machines.”

Em sentido oposto ao de Lanier, Bruce Sterling (The Blast Shack) afirma que “Wikileaks Cablegate scandal is the most exciting and interesting hacker scandal ever.” Relacionando com a história do movimento Cyberpunk, ele mostra que o Wikileaks “is a manifestation of something that this has been growing all around us, for decades, with volcanic inexorability. The NSA is the world’s most public unknown secret agency. And for four years now, its twisted sister Wikileaks has been the world’s most blatant, most publicly praised, encrypted underground site.”

Manuel Castells em Quién teme a Wikileaks, mostra como as novas tecnologias de comunicação reconfiguram a comunicação política no século XXI. Para o sociólogo espanhol “el drama no ha hecho más que empezar. Una organización de comunicación libre, basada en el trabajo voluntario de periodistas y tecnólogos, como depositaria y transmisora de quienes quieren revelar anónimamente los secretos de un mundo podrido, enfrentada a aquellos que no se avergüenzan de las atrocidades que cometen pero sí se alarman de que sus fechorías sean conocidas por quienes los elegimos y les pagamos.”

Já Umberto Eco, em No Such Wicked Leaks, chama a atenção para a falta de novidade nas informações e para a repetição do caso nos meandros do segredo e da diplomacia em níveis mundiais e históricos. Em uma perspectiva que desmerece a novidade do Wikileaks, o pensador italiano mostra que: “First off, the WikiLeaks confirm the fact that every file put together by a secret service (of any nation you like) is exclusively made up of press clippings. The “extraordinary” American revelations about Berlusconi’s sex habits merely relay what could already be read for months in any newspaper (except those owned by Berlusconi himself, needless to say), and the sinister caricature of Gaddafi has long been the stuff of cabaret farce.”

Em todas as citações vemos visões sobre o público, a democracia e a informação. Vamos explorar essa questão mais adiante. Antes, para situarmos historicamente o “affaire” Wikileak, vou retomar algumas ações ciberativistas que na minha opinião conformaram a cibercultura.

Rápida História do Ciberativismo

O papel das tecnologias de comunicação e informação (TICS) na reconfiguração do jogo político não é um fato novo, desde as ações ativistas e micropolíticas, até o uso por candidatos, políticos eleitos, partidos políticos, bem como governos e instituições públicas. No que se refere a ações ativistas, podemos dizer que elas acontecem desde o surgimento da micro-informática (já em 1970 uma guerrilha contra a Grande Informática, de acordo com P. Breton) e ganham corpo com a expansão da internet nos anos 1990. Temos como exemplo a máxima “a informação quer ser livre” dos anos 1980; o ativismo “hacker” nos anos 1990 pela segurança da informação, o surgimento do movimento do software livre e de formatos abertos a partir do “Napster”; a luta contra a censura em diversos países, como China; as ações pelas mídias sociais em apoio a luta social em países totalitários, com nas últimas eleições no Irã, entre outros.

O caso “Wikileaks” (que usa “hacktivismo” e redes sociais como indica o nome – “Wiki”, plataforma colaborativa online e “Leak”, vazamento, no caso, circulação de informação) é a mais nova faceta do ciberativismo global onde o site libera informações confidencias de interesse público, guardadas como segredo de Estado em diversos países. O seu idealizador é um ciberativista e o site existe desde 2006. A atual guerra cibernética (censura ao site por empresas e redes sociais, contra-ataque de “hackers” contra os “inimigos” do “Wikileaks”, prisão do seu coordenador na GB, etc.) é herdeira de outras lutas no ciberespaço como a “Operação Sun Devil”, em 1991 (que culminou com o surgimento da “Electronic Frontier Foundation”); a manifestação contra o chip “Clipper”, em 1993 (uma tentativa de vigilância e controle de computadores e redes pelo serviço secreto americano, culminando com o movimento “cyberpunk” de criptografia (“cypherpunk”), e o programa de criptografia “PGP”); a campanha das fitinhas azuis nos websites contra a censura na rede do “Communication Decency Act” (que ficou conhecido como “Cyberporn”); o ataque e as diversas reações contra a livre troca de arquivos a partir do surgimento do “Napster” em 2000; o ativismo colaborativo copyleft pela livre circulação de informação e de novos sistemas de direito de autor (como o Creative Commons); o movimento do software livre contra os sistemas proprietários, etc. Em todos esses movimentos, politização, circulação livre de informação e uso de redes sociais (desde a “Usenet” nos anos 1990, até o “Twitter” e “Facebook” hoje) produzem um importante e interessante arranjo sociopolítico.

Com o caso “Wikileaks”, emergem, entre outras, algumas questões: É possível controlar e censurar a internet? Qual o papel dos meios de comunicação de massa? No que se constitui, se é que se constitui, essa esfera pública global? Estamos falando de ciberguerra ou de ciberativismo? Qual o limite da legalidade ou da ilegalidade no acesso e difusão de informações confidenciais? Toda informação quer ser livre? Como medir o impacto do ciberativismo nos países envolvidos? Como analisar o papel das redes sociais nesses movimentos? Estamos vendo a emergência de uma cidadania global?

Informação, Democracia e Público Fantasma

Para lançar uma outra luz sobre esse fenômeno, pode ser interessante rever as posições de Lippmann e Dewey sobre o público. Não vou me estender aqui nessa análise (farei isso no artigo), mas apontar a visão desses autores sobre o “público” e a “informação” (o cerne da questão Wikileaks) em uma democracia na qual as tecnologias de informação (eles falam no começo do século XX, mas pode ser adaptado para a nossa época) são uma realidade.

Para Lippmann e Dewey (ver o interessante artigo de Noortje Marres, “Issues Spark a Public into Being”) em suas obras “The Phantom Public” e “The Public and its Problems”, respectivamente, mostram que o problema nas democracias contemporâneas não é um problema de informação selecionada, contextualizada e digerida. Para esses autores, a democracia não deve ser uma forma política para evitar controvérsias, trabalhar informações contextualizadas e adestrar cidadãos mas, bem diferentemente, uma prática que acolha conflitos. É só nesse acolhimento, sustentam os autores, que o público pode aparecer e entrar no debate.

Uma das críticas centrais ao Wikileaks é justamente essa: que o site revela informações sem contextualizá-las, fazendo assim do público um refém e proporcionando um desserviço a causa democrática. Mas, para Lippmann e Dewey a democracia deve ser, ao contrário, o lugar das controvérsia onde informações não digeridas e problemas não solucionáveis trazem, e só assim, o público à baila. Para esses autores, o público é algo “virtual”, “abstrato”, criado pelas mídias (ver nesse sentido Tarde em “A Opinião e o Público”). Para os autores ele só aparece quando há controvérsias, como é o caso atual do Wikileaks (um público diverso, não uma comunidade: jornalistas, serviço secreto, diplomatas, hackers, políticos, acadêmicos, leitores, etc.). Como mostra Marres:

“One reason could be that a public is a partly imaginary entity — a phantom as Lippmann put it. In calling the public by this name, Lippmann was fol owing the Danish philosopher Kierkegaard, who famously declared that after the rise of the press, the public was no longer primarily represented by “men of excel ence,” but had taken on the form of an abstract creature”

A solução não é traduzir questões complicadas em meios tecnológicos mas produzir controvérsias. Só assim o público pode aparecer e sair de seu estado fantasmagórico. Lippmann e Dewey simplesmente rejeitam a ideia de que a informação trabalhada e contextualizada seja uma condição para a democracia. Muito pelo contrário, é na tensão, na problematização, nas controvérsias que o público pode aparecer e a democracia buscar sua realização. Para Lippmann e Dewey a prática democrática deve sustentar que “‘foreign entanglements,’ far from constituting an obstacle to democratic politics, actually play an absolutely key role in getting people involved in politics.” Esse é o papel central da prática democrática, convocar o “público” ao debate. Nesse sentido, o Wikileaks é uma excelente oportunidade para ressaltar controvérsias e colocar o público em debate e não o contrário, sendo um desserviço à democracia por oferecer informação não contextualizadas e sem solução rápidas e fáceis. Para os autores, de acordo com Marres:

“Yet it is in controversies of this kind, the hardest controversies to disentangle, that the public is called in to judge. Where the facts are most obscure, where precedents are lacking, where novelty and confusion pervade everything, the public in all its unfitness is compelled to make its most important decisions. The hardest problems are problems which institutions cannot handle. They are the public’s problems.”

Isso é o faz o Wikileaks. É justamente onde as instituições estão em impasse (a diplomacia, os jornalistas envolvidos com grande empresas e que não podem publicar os “cables”, os políticos e instituições envolvidas) e não conseguem se explicar muito bem que o público aparece. Ele é assim, “atualizado” e pode se engajar na coisa “pública”. Ele só existe na controvérsia e não como uma entidade concreta, alcançável e comunitária.

Nesse sentido, a crítica ao Wikileaks, por esse viés, deve ser relativizada. Ele produz controvérsia em nível planetário, passando por cima de fronteiras e atualizando um “público” mundial. Talvez, como disse Sterling, esse seja mesmo o caso mais expressivo do hacktivismo. Pela polêmica e não resolução pelas instituições envolvidas, o “affaire” Wikileaks convoca o público a se posicionar. E o público aqui não é uma comunidade de opiniões convergentes, mas um conjunto de indivíduos com interesses precisos, diferenciados e conflituosos. A democracia não pode ser resumida a informações relevantes e a soluções simples dos problemas.

Podemos ver Lippmann e Dewey como precursores da teoria Ator-Rede já que o publico não é uma entidade abstrata, global, mas um actante que se atualiza no problema a ser enfrentado, sendo um mediador em uma rede de actantes formados por jornalistas, governos, ativistas, hackers, empresas, etc. Não é à toa que Latour retoma Lippmann nas suas mais novas intervenções (ver como essa discussão se dá aqui e aqui).

O “affaire Wikileaks” presta um grande serviço à democracia (como mostra Castells, no texto citado assim) e traz à tona o tão falado público, entidade fantasma, tendo a sua aparição exatamente nesses momentos. Para Lippmann e Dewey quando as partes trabalham para ajustar o problema não há nenhum envolvimento público. Ele simplesmente desaparece. Ele só se apresenta ou deve se apresentar quando as instituições falham nessa resolução. É aqui o público passa a ser um “actante”, um mediador em uma rede complexa de actantes. Como afirma Marres:

“According to Lippmann, it is thus the failure of existing social groupings and institutions to settle an issue, which sparks public involvement in politics. It is the absence of a community or institution that may deal with the issue, that makes public involvement in politics a necessity. (…) Dewey, just like Lippmann, sees the need for public involvement in politics arise when those directly involved in an affair fail to deal with a problem. (…) “As long as a social grouping successful y manages its own affairs, these affairs are not really the public’s business.” Wikileak é assim um “affaire” do público e um momento de exercício da democracia. (…) In the case in which a public is confronted with the failure of existing institutional arrangements to deal with the issue that called this public into being, then the public must “re-make the state.”

Essa “reconstrução do Estado” se dá pela “soltura” (‘ungraspability’), como uma forma de agência. Podemos concluir que;

“We then say that what makes a public such a special agent is that when specific actors get organised into one, they may evoke the anonymous, collective, virtual, somewhat mysterious creature we call public. And maybe it is precisely in this capacity of a phantom, that a public may generate that virtual, somewhat mysterious thing called “pressure,” which can then be directed at specific instances, to induce shifts in their habits, policies, regulations, commitments..”

Não seria esse o caso do Wikileaks; uma pressão mundial que pode redirecionar hábitos, politicas, regulamentações e compromissos?

Desenvolvimentos futuros virão no artigo.

Affaire à suivre…