Sobre Carros e Cyborgs

Notícias sobre os 50 anos do termo cyborg e sobre um carro que dirige sozinho nos permitem pensamentos sobre o híbrido e colocar em perspectiva o termo cyborg, por um lado, e questionar o conceito de “pós-humano”, por outro. Vou situar essa discussão a partir da ótica da sociologia das associações presente na Teoria Ator-Rede (Actor-Network Theory, ANT).

Cyborgs e carros autônomos expressam um mesmo fenômeno: o híbrido humano e não humano, e por isso causam, a primeira vista, estranhamento. Esse estranhamento parte de um primeiro erro crucial da discussão sobre tecnologia: a separação sujeito – objeto, partindo do princípio que nossa subjetividade se forma para além da relação com os objetos e as coisas lá fora. Da mesma forma, pensamos que não podemos delegar às máquinas, o mundo das coisas, a ação sobre os humanos, o mundo social. Esse erro parte de um privilégio do humano como a subjetividade que se impõe ao mundo dos objetos, separadamente. Cyborgs podem ser considerados pessoas? Um carro que dirige sozinho pode receber legalmente essa delegação? Para pensar o cyborg, utilizarei aqui a teoria ator-rede.

Teoria Ator-Rede

A Teoria Ator-Rede (Actor-Network Theory – ANT), estabelecida por Bruno Latour, Michel Callon e John Law nos anos 1990 para o estudo da ciência e tecnologia (S&T Studies), pode ser de grande interesse para a compreensão dos diversos fenômenos agrupados sobre o rótulo de cibercultura. ANT busca ser uma ciência do social a partir de um olhar sobre as associações, evitando explicá-las por grande sistemas generalistas e/ou globais. Reivindicando uma “sociologia das associações”, ao invés de uma “sociologia do social”, essa teoria tem como pressuposto “filosófico-empírico” (que é de grande valia para a análise da sociedade e a cultura da informação) o entendimento de que as ações sociais são geradas por uma miríade de mediadores e intermediários, formando redes. Tanto os agentes humanos, como não humanos (objetos, instituições, leis, mídias, etc.) atuam sem hierarquias previamente determinadas. Nesse sentido, ANT descreve e analisa o social a partir das “falas” dos “actantes” (mediadores) sem que esses sejam obrigados a “dançarem” conforme uma música (às vezes bastante confortável, travestida de visão “crítica” ou “política”) previamente definida, podendo ser encaixada em todos os objetos. Se é assim, não há o que estudar e o social, enquanto associação, desaparece.

Para os estudos de cibercultura (“cyberculture studies”), a ANT pode ajudar a revelar os traços das associações em fenômenos tão dispares quanto a sociabilidade online, a vigilância, as mídias locativas, o corpo e a subjetividade, as interfaces e interações, a arte, o ativismo, o governo eletrônico, os games, a inclusão digital… Por ser um campo privilegiado de análise da relação de mediadores humanos e não humanos, e por suas ações deixarem traços (digitais, materiais) cada vez mais visíveis, a cibercultura é um lugar importante de observação das associações, conexões e traços que fazem, e só assim, o social hoje. Vejamos como podemos aplicá-la na questão do cyborg.

Híbridos desde sempre ou sempre fomos cyborgs


Imagem no 50 posts about Cyborg

Pensar as ações sociais é revelar as associações entre actantes humanos e não humanos formando redes nesses momentos, que se desfazem mais adiante para se reconstruírem (ou não) mais a frente. Podemos dizer então que ver as “associações” que criam o social é sempre prestar atenção nas diversas conexões entre “cyborgs” (definido aqui como híbridos humano-não humanos) que se formam em uma determinada ação. Por exemplo, escrever esse texto deve levar em conta aquele que escreve, mas também os dispositivos técnicos, o enquadramento institucional, a relação com os grupos de pesquisa, alunos, pesquisadores, os pares, órgãos de financiamento à pesquisa, etc. Como diz Latour a propósito do avião : “um Boing não voa o que voa são companhias aéreas“. Podemos, certamente, expandir essa máxima para todo o campo social. As associações que formam o social (e não o contrário) estabelecem redes de actantes humanos e não humanos. Assim sendo, revelando as “cyborgizações” das associações, podemos descrever as conexões sociais para além de uma visão simples e dicotômica do sujeito e do objeto.

A idéia do cyborg (palavra composta pela junção de cibernética e organismo) emerge para falar dos novos híbridos da era eletrônica, mas pode ser efetivamente expandida e posta em perspectiva. O Écrans mostra em post de hoje que o termo surge há exatamente 50 anos na ficção-científica, na era da contracultura.

Le cyborg, rappelle Tim Maly, auteur de Quiet Babylon, blog consacré au cyborg et à l’architecture, est un produit de l’ère de l’acide, de l’Agent orange et des drogues, mais aussi de la guerre froide et de la course à l’espace. Comment survivre sur une autre planète ? La solution architecturale fut envisagée (avec recréation des conditions de vie sur Terre), mais les scientifiques Clynes et Kline (dans Cyborgs and Space) avaient une vision différente : plutôt que d’adapter l’espace, pourquoi ne pas nous adapter à lui, en modifiant l’organisme humain à l’aide de drogues, pour en faire un « organisme cybernétique » (cyborg) ?

Escrevia em 1999 (Bodynet e Netcyborgs., in Rubim, A., Bentz, I., Pinto, M.J., Comunicação e Sociabilidade nas Culturas Contemporâneas., RJ, Vozes/Compós, 1999), sem referências ainda à teoria Ator-Rede:

“A questão da artificialidade está presente desde a formação do homem e das primeiras sociedades. Toda formação social se estabelece numa circunscrição (que necessita o controle e a transformação) da natureza. A cultura emergente é resultado de um processo de artificialização da natureza.

Serge Moscovici tratou desse assunto no seu excelente “La société contre nature”. O que causa a irrupção do gênero humano, e sua supremacia sobre os demais animais é justamente a possibilidade, em construindo a cultura, de elevar-se acima da natureza e para além dela. O processo de “cyborgização” contemporâneo nada mais é que a continuação inelutável dessa ordem à parte formada pelo homem, de sua saída da natureza na construção dessa “segunda ordem artificial”. (…) A questão do artificial se descola assim de uma possível dicotomia com o natural pois a sociedade e o homem se formam no processo de artificialização do mundo. Assim, “l’homme sans art, sans technique gestuelle et mentale, nous est inconnu et inconnaissable” (1).

O italiano Ezio Manzine (2) mostra, com precisão, que toda ação humana se desenrola nos fatos culturais que, por sua vez, tem como característica essencial a artificialidade.(…) Dessa forma, a história do artificial e da humanidade coincidem plenamente, já que “pour l’homme, produire de l’artificiel est une activité absolument naturelle”(3). O artificial, longe do que imaginamos no senso comum, é profundamente humano. Isso posto, a dicotomia entre o artificial e o natural perde sentido e a questão do cyborg pode ser colocada como estrutural da própria humanidade.

O primeiro homem, que de uma pedra faz uma arma e um instrumento, é o mais antigo ancestral dos cyborgs. Bernard Stiegler(4), utilizando-se dos estudos de André Leroi-Gourhan(5), mostra como a formação do homem e da técnica se estabelece num processo simbiótico, onde não se sabe ao certo se o homem produz ou é produzido por ela. O fenômeno técnico é a primeira característica do fenômeno humano, já que a antropogênese coincide (de forma simbiótica) com a tecnogênese. O homem não pode ser definido, antropológica e socialmente, sem a dimensão da técnica. (…) A cultura, como tragédia entre a “subjetivação” do objeto e “objetivação” do sujeito(8), se constitui no coração do fenômeno técnico.”

Assim os termos cyborg e pós-humano são bons para ficção-científica mas não fazem muito sentido antropológica e sociologicamente falando. O que marca o humano é esse hibridismo com atores não-humanos por delegação, tradução, intermediação e mediação (não tenho tempo para desenvolver esses conceitos aqui. Vejam para isso Latour, B., Reassembling the Social, Oxford, 2005). O que caracteriza a humanidade é essa relação de mediação e intermediação com atores humanos e não humanos, constituindo objetos técnicos os mais diveros (dispositivos, leis, instituições, símbolos, artefatos). O próprio do humano é ser um híbrido onde sujeito e objeto só podem ser compreendidos enquanto redes que se formam e se deformam aqui e acolá, e não como instâncias separadas, imanentes que interferem uma na outra. Nesse sentido, o termo cyborg e, mais ainda, o conceito de pós-humano é totalmente sem sentido. Não há humano fora das associações com atores não humanos. O cyborg é o humano demasiadamente humano.

A delegação do “dirigir” ou o carro intermediário e mediador.


Ramin Rahimian for The New York Times
Dmitri Dolgov, a Google engineer, in a self-driving car parked in Silicon Valley after a road test.

O cyborg está presente na discussão sobre um novo carro automático da empresa americana Google, expandindo as suas ações para além das máquinas de busca e celulares. A Google está testando carros que dirigem sozinhos, sendo um dos objetivos vender, seja o sistema para construtoras (como faz com o Android para celulares), seja conteúdos de localização para os novos carros que venham equipados com esses novos dispositivos. Texto do NYT revela a dimensão do projeto:

The Google research program using artificial intelligence to revolutionize the automobile is proof that the company’s ambitions reach beyond the search engine business. The program is also a departure from the mainstream of innovation in Silicon Valley, which has veered toward social networks and Hollywood-style digital media.

No entanto, o projeto apresentaria, no futuro, problemas legais. É aqui que entra minha análise.

“But the advent of autonomous vehicles poses thorny legal issues, the Google researchers acknowledged. Under current law, a human must be in control of a car at all times, but what does that mean if the human is not really paying attention as the car crosses through, say, a school zone, figuring that the robot is driving more safely than he would? And in the event of an accident, who would be liable — the person behind the wheel or the maker of the software?”

Estamos acostumados à delegação no trânsito e às diversas formas de intermediação no uso dos automóveis. Sinais de trânsito, faixas na pista, regras de conduta, quebra-molas, pedágios e outras normatizações da prática da mobilidade no trânsito já são bem conhecidas e aceitas (bom, mais ou menos, visto os constantes desrespeitos) por nós. As delegações (ao sinal para dizer quando devemos parar ou andar, às faixas pintadas no chão, informando se podemos ultrapassar ou não, às placas proibindo ou permitindo estacionar aqui ou ali, etc.) são formas de mediação em que acreditamos e por isso, ritualisticamente encenadas a cada dia, funcionam. A sociabilidade no trânsito emerge dessas constantes ações entre humanos e não humanos. Com essas delegações não precisamos, por exemplo, de um ator humano dizendo se podemos passar, estacionar ou ultrapassar. O social emerge aqui das diversas associações entre humanos (motoristas, pedestres, guardas de trânsito) e os diferentes atores não-humanos, objetos e signos que agem ora como intermediários, ora como mediadores.

O mesmo acontece com o carro, mas nesse caso, mesmo delegando coisas (o funcionamento da potência motora ao motor, a confiabilidade no airbag ou no cinto de segurança, etc.), o ator humano é um mediador necessário e legalmente responsável nessa rede que se forma enquanto se dirige. Quando dirigimos, somos esse híbrido homem-carro-signos-normas-objetos. Mas com o carro autônomo da Google, uma outra, estranha e radical delegação acontece. A ação de dirigir é delegada a um computador e a um batalhão de sensores, redes, GPS, que guiam o carro pelas ruas e o fazem se relacionar com outros carros, objetos, signos, ciclistas e pedestres. Na experiência da Google, a ação humana ainda está presente para evitar que falhas no sistema possam gerar acidentes.

A questão é importante, já que afeta dimensões políticas, morais, éticas. Não é nova a delegação de ações à não-humanos fazendo com que esses funcionem como intermediários e mediadores. A novidade está na nova dimensão dessa mediação (o homem não dirige mais) e na dimensão legal dessa delegação (é o computador que dirige).

Aceitamos a delegação e a mediação da máquina quando dirigimos um carro, já que isso só acontece (a legalização do ato de dirigir automóveis) pois acreditamos e confiamos na relação do carro com o mundo externo a partir de uma miríade de agentes não humanos (a sinalização, o motor na arrancada, o freio, o sinto de segurança, o airbag vão funcionar), assim como no humano que respeitaria as regras e saberia lidar com os outros atores humanos e não humanos. O cyborg está aqui compreendido como um rede de ações entre humanos e não humanos. Não há grande divisões entre o “sujeito” que dirige e o “objeto” que reage. Eles são uma rede que se faz na ação de sujeito-objeto humano-carro. A ação se desfaz quando paramos momentaneamente de dirigir, mas não totalmente, pois viramos assim pedestres… Há portanto, no “novo carro”, uma outra forma de delegação e ação de mediadores e intermediários que exigiriam adaptações nas leis. O novo híbrido “humano-carro” deve ganhar novas responsabilidades e enquadramentos legais.

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