Mobilidades do Poder

Matéria de hoje do jornal Le Monde mostra que a polícia francesa possui arquivos pessoais de imigrantes nômades, utilizado sem respaldo legal, cruzando informações pessoais e étnicas. Segundo o quotidiano francês, o “fichier des Roms MENS (Minorités ethniques non sédentarisées)” estaria sendo contestado pela “Commission nationale de l’informatique et des libertés (CNIL)” e por quatro entidades de defesa de minorias e imigrantes. A questão estoura depois da expulsão dos ciganos romenos da França pelo governo Sarkozy. A polícia desmente, mas segundo as associações que protestam existe mesmo um “fichier ethnique, illégal et non déclaré“. Ele foi revelado pelo Le Monde no dia 07 de outubro.


AP/Christophe Ena. Des Roms dans un campement à Fleury-Mérogis, le 6 septembre 2010.

Estamos em meio a uma cultura da mobilidade, onde produtos, commodities, finanças e informação digital circulam livremente pelo planeta. A mobilidade é hoje um motor da economia digital e uma força estratégica da globalização. Celulares, smartphones, notebooks, netbooks, tablets, e-readers acoplados às mais diversas redes sem fio (3G, Wi-Fi) fazem das mobilidades física e informacional uma realidade planetária. Elas estão em expansão na sociedade da informação. Como mostrei em artigo recentemente publicado:

“No entanto, a mobilidade deve ser politizada. Ela não deve ser vista apenas como o percurso entre pontos, ou o acesso a determinada informação. Ela não é neutra e revela formas de poder, controle, monitoramento e vigilância, devendo ser lida como potência e performance. Bonss e Kesselring (2004, apud Kellerman, 2006) propõem o termo “motility”, emprestado da medicina e da biologia para explicar a capacidade para o movimento. Na atual cultura da mobilidade, esta potência varia de acordo com o indivíduo ou grupo social, segundo estruturas de poder. Pensemos, por exemplo, naqueles que se deslocam em transportes públicos e/ou privados, nos que têm acesso à internet por banda larga ou linhas discadas, nos que podem viajar o mundo e dos que nunca saem dos seus lugares de nascimento. Parece haver hoje uma correlação e ampliação dos poderes já que quanto maior a potência de mobilidade informacional-virtual, maior é a mobilidade física e o acesso a objetos e tecnologias. A mobilidade informacional (acesso rápido, pleno e fácil à informação) é correlata à potência (motility) da mobilidade física. Os que podem se movimentar mais facilmente pelo ciberespaço são também os que têm maior autonomia para o deslocamento físico e vice- versa. A cultura da mobilidade não é neutra, nem natural.”

O caso da expulsão dos ciganos da França remete para essa “motility” e para as atuais “mobilidades do poder”.

A idéia que está por trás da discussão sobre a mobilidade contemporânea é a do surgimento de novos nômades, os nômades high-tech. Esses são seres da mobilidade física e informacional que consomem artefatos e informação, buscando pontos de conexão no espaço urbano das grande metrópoles. Ele não erram, por assim dizer. Só “acertam”. Estão totalmente integrados às amarras bem sedentárias do trabalho, do documento, da ocupação, da família. Longe de serem nômades vagabundos, eles são “trabalhadores móveis ancorados no conforto dos bens e serviços sociais”. Eles não são os nômades do “intermezzo” (Deleuze e Guattari, Mille Plateaux, 1980) e nem os nômades imigrantes “sans papier” (veja a esse propósito o interessante livro de Derrida sobre a hospitalidade). Ter papel é estar inscrito, é ter um nome, é ter um corpo, é ter um lugar. Os novos nômades high-tech têm papel, trabalho, domicílio. Eles são tratados pela sociedade da informação com elogio e benesses, bem diferente do tratamento dado pela “modernidade” aos outros nômades da história, onde aí incluimos os ciganos romenos, estigmatizados desde os tempos mais remotos. Jacques Attali, em seu livro “L’Homme Nomade” (Fayard, 2003), mostra que a história humana pode ser lida como uma história do nomadismo. É graças a essa troca incessante dos que não têm moradia fixa (os “sans papier”) que a cultura se espalha e se enriquece globalmente. É a era moderna, com a disciplina sobre o corpo individual e o biopoder sobre o corpo social (Foucault), a grande inimiga do nomadismo. Todo o processo civilizacional tem sido uma luta contra o nomadismo, afirma Attali. Daí o estigma ao flâneur, ao vagabundo, ao viajante, ao estrangeiro, ao cigano…


Proibido flânar em shopping em Montréal, Canadá

Na era da mobilidade, nômades high-tech, bem enraizados, bem equipados e bem vestidos são aceitos e mesmo estimulados pela sociedade global. Parecem nômades, mas não são na realidade. São simulacros de nômades, saindo com suas mochilas cheia de artefatos, cabos e baterias, rodando por redes wi-fi ou 3G, mas voltando sempre curvados e cansados para a segurança de suas casas bem equipadas depois de um dia móvel, alegre e interativo de trabalho. A sociedade contemporânea, em meio a um fluxo desterritorializante de dispositivos, informação, empresas e produtos, persiste em não aceitar e não querer os velhos nômades, sem lenço, sem domicilio ou trabalho fixos e sem documento, a zanzar pelas ruas, mostrando um “diferente, sujo e escorregadio” estilo de vida que em nada se assemelha e que não quer se integrar ao padrão ocidental. Por isso informação, empressa, produtos, marcas, finanças, podem circular livremente. Mas não as pessoas.


Nômade high-tech. Projeto Wi-Fi Bedouin de Julian Bleecker

O suposto arquivo ilegal da polícia francesa mostra formas de estigma e de viligância bastante conhecidos, unindo vigilância disciplinar e panóptica às mais modernas, interativas, locativas e móveis formas de controle dos movimentos. Assim termina a matéria do Le Monde:

“Donner aux services de sécurité les moyens, notamment informatiques, d’une action efficace est nécessaire et légitime. Mais, dès lors que cela risque de porter atteinte aux libertés, ces moyens d’action doivent être très sérieusement contrôlés. Y renoncer revient inévitablement à fermer les yeux sur des dérives d’autant plus inacceptables qu’elles conduiraient à un fichage – pour ne pas dire un flicage – ethniques ou racial. En dépit de toutes les mises en garde, ce n’est, hélas !, pas le cas.”

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