Mariana, uma política dos objetos

Hoje ? tarde fui ver o trabalho do fotógrafo Christian Cravo, Mariana, no Centro Cultural da Caixa em Salvador. Uma bela exposição, tendo como centro objetos encontrados depois da tragédia ambiental naquela cidade mineira. A mostra não é grande, com duas dezenas de fotos com suporte de textos em braile e descrição sonora. Esta deveria ser solicitada por todos, pois não há apenas uma descrição formal das fotos, mas uma escrita po?tica sobre cada uma delas. Pedi para usar, pois ninguém me ofereceu, nem vi outros visitantes usando. Uma pena. Fiz todo o percurso da exposição primeiro sem a descrição sonora e depois com os fones. A experiência é ampliada pelo texto recitado. Há problemas, pois o som não está sincronizado com o local onde você se encontra e ha divergˆdncias entre alguns poucos títulos das fotos, mas ouvir a descrição ajuda a entrar no clima e no ambiente da destruição, além de revelar coisas que passariam desapercebidas nas fotos.



 

Mariana ? uma exposi??o sobre objetos privados que sobreviveram de alguma forma ao desastre. Em face a uma trag?dia de dimens?es nacionais, sen?o planet?ria, pois ? uma agress?o ? natureza e esta n?o pertence a um pa?s, a exposi??o ressalta a vida e a mem?ria das pessoas que ali viveram atrav?s daqueles objetos no espa?o da casa. O olhar do artista revela, pelos objetos, uma dimens?o pol?tica do evento. Sem as fotos, esses objetos soterrados e deixados ao tempo seriam extirpados para sempre da vida social. Cravo cria assim uma pol?tica dos objetos ao destaca-los em fotos bel?ssimas que parecem pinturas. Em determinados momentos me aproximei para ver se n?o havia ali pigmentos sobre as fotos.

?Bruno Latour diz que todo objeto ? social. F?sseis, ou objetos enterrados e ainda n?o descobertos n?o possuem dimens?o pol?tica, pois n?o t?m qualquer tipo de associa??o ou v?nculo. Pois bem, Cravo desenterra os objetos da lama e os recoloca em vida, politizando-os e nos fazendo sentir, para al?m da mis?ria econ?mica e pol?tica que causou o acidente, e ainda evita as suas compensa??es, o sofrimento das coisas esquecidas, deixadas em sua ainda incompletude, reduzidas ao abandono e desconectadas da vida daqueles aos quais elas estavam um dia associadas. Vemos muitos objetos e, quanto mais objetos, mais sujeitos aparecem como fantasmas orbitando as coisas. Sem esses objetos, os espectros se perderiam para sempre vagando assombrados pela lama e caos.

 

Mas agora, esses objetos fotografados nos colocam como testemunhas de constru??es subjetivas interrompidas pela lama criminosa: Duas escovas de dentes em um arm?rio de pl?stico de banheiro; sapatos virados; cal??es cobertos de areia; bonecas como suporte para? medalhas; est?tuas de santos; cortinas em janelas e portas se contorcendo para escapar da f?ria da lama; colch?es tentando sair pela porta da frente da casa; panelas sobrepostas como se fossem comida uma das outras; disco de vinil ecoando sons ouvidos na calada da noite; calcinhas se exibindo em um varal de arame; livros, b?blia ou resson?ncias magn?ticas do cr?nio deixando rastros e letras misturados ? mat?ria suja; arm?rios com objetos para sempre ali guardados… E nada ? obsceno na revela??o desse espa?o privado. N?o nos sentimos invadindo, vigiando, ou controlando a vida dos outros como nas redes sociais da internet. Somos deslocados para um regime testemunhal, atrav?s da m?gica da arte, e colocados em uma posi??o de solidariedade para com a dor e o sofrimento da perda e do abandono desses sentimentos acoplados aos objetos.

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O testemunho ? aqui uma forma de criar, uma m?gica do ressuscitar, produzindo um salto existencial que revela, a partir do privado e dos dilemas dos seres que ali viviam, os problemas do p?blico. Os objetos agora s?o nossos e, portanto, tornam-se politizados. Pela fotografia, eles n?o est?o mais isolados no soterramento. Entramos no regime do p?blico, pois esses objetos, pela posi??o testemunhal em que somos colocados, nos concernem. Cravo ? assim um demiurgo, no sentido grego da palavra, aquele que faz um trabalho (ergos) para o pensar o povo (demos). E at? as fotos de humanos, que est?o expostas agrupadas em uma sala, valem menos por serem fotos de gente, do que por se constru?rem como objeto-foto em autorretratos. A ?nica foto que n?o retrata objetos privados ? a que se situa logo na entrada da exposi??o, ?Desenraizar?, mostrando uma paisagem de ?rvores em meio ao caos da lama no terreno destro?ado pela trag?dia. Aqui, o argumento ? apresentado, mas s? vamos perceber isso no final. A exposi??o destaca as mazelas dos povos mais vulner?veis em meio a uma pol?tica irrespons?vel, ao poderio econ?mico e ao descaso ao meio ambiente. Mas pretende falar disso n?o a partir de uma idealiza??o das coisas naturais (ou mostrando a sua destrui??o), mas destacando essa parte central da nossa constitui??o enquanto indiv?duos, sujeitos, grupos: os objetos.

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Criar ? testemunhar. Viver ? perspectivar. Cada perspectiva atesta a realidade de um modo de exist?ncia. O sucesso da obra de Cravo ? a certeza de que agora os objetos voltaram ? vida em outras bases. Os objetos fotografados s?o resgatados e n?o est?o mais soterrados, mortos. Eles foram ressuscitados pelo artista, fazendo com que tenham, portanto, um outro v?nculo, n?o mais apenas privado, mas p?blico. Eles continuam, certamente, a contar as hist?rias inacabadas do espa?o privado, interrompidas pela avalanche de lama, ou seja, eles s?o ainda parte da mem?ria de vidas passadas. Mas Cravo, pelo seu testemunho/cria??o, d? vida/cria uma nova perspectiva, e os coloca para al?m dessa mem?ria privada nos transformando, n?s o p?blico, em part?cipes (testemunhas/criadores) desse novo modo de exist?ncia desses objetos. Eles agora fazem parte tamb?m da minha mem?ria, da sua e de todos que ir?o testemunhar as fotos. Desenterrados (desvelados), esses objetos ressuscitam em um novo modo de exist?ncia, ganham novas trajet?rias e, assim, s?o trazidos ? discuss?o p?blica, ? circula??o da palavra, ? pol?tica, portanto.

A exposi??o nos joga em imagens que nos veem e que nos produzem como testemunhas. Se ? assim, ela n?o ? mais privada, ou de alguns, mas de todos, em circula??o. Essa politiza??o, entretanto, n?o ? feita pelo discurso sobre o descaso pol?tico, ou apontando o desprezo econ?mico dos respons?veis pelo exterm?nio de vidas e sonhos agora soterrados, mas por uma politiza??o dos objetos colocando-os em discuss?o. A virtualiza??o da arte, sua media??o, ou seja, seu modo de comunica??o, ? assim um poderoso produtor de modos de exist?ncia, ou seja, de testemunhos e de perspectivas. E s? com novas perspectivas podemos nos sentir, mais uma vez, conectados, entrela?ados, comprometidos com a coisa p?blica. A exposi??o “Mariana” resgata os objetos da lama, os politiza pela est?tica e nos coloca como parte respons?vel pelo seu destino.