André Ferreira Lemos, in memoriam

Adoro o acaso. Foi por acaso que nasci nessa família. Tenho dado muita sorte, e todo o acaso na minha vida só tem me trazido coisas boas, com alguns percalços aqui ou ali, como todo mundo.

Quando morava na França, entre 1991 e 1995, recebia cartas já que ainda não tínhamos internet e emails como instrumentos de comunicação populares. Meu pai e minha mãe sempre me escreviam e ligavam de vez em quando já que as ligações eram muito caras (também não havia telefone celular). As cartas da minha mãe chegavam quase todas as semanas. E eram sempre as mesmas cartas, repetindo as notícias, repetindo as recomendações e repetindo os votos de sucesso, saúde e felicidade. Minha mãe é assim, circular, redundante, excessiva. Meu pai não, mais calado, escrevia menos e ligava pouco. Sempre ficou muito na dele, embora quando estava com amigos e familiares sempre tenha sido expansivo, alegre, extrovertido, simpático.

Todos gostavam muito do meu pai. Todos gostam muito da minha mãe, mas meu pai contagiava pela seu olhar azul radiante, pelo seu sorriso amplo e sincero, pela sua ingenuidade que me irritava já que ele considerava todas as pessoas boas, sinceras, honestas (bom, até que elas fizessem algo muito explicito e aí ele soltava os cachorros). Era assim, extrovertido, mas muito temperamental, explosivo, impaciente. Ou seja, um ser admirável sob todos os aspectos.

Espírita, lia muito e, músico (chegou a ser profissional tocando trompete em bandas oficiais do interior da Bahia e no Rio, quando foi lá morar em 1950), vivia nos últimos anos com um fone de ouvido acoplado ao corpo ouvindo muito música clássica, mas também tudo, tudo mesmo. Acho que músicos são pessoas especiais. Não são tão seletivos e esnobes como os ouvintes que gostam disso ou daquilo. Meu pai ouvia tudo e quando eu perguntava para ele como ele, sendo um músico, poderia gostar de tal música, ele simplesmente me respondia que era música, que gostava ou do ritmo, ou da voz do cantor, ou da letra…era música! Perfeito! Era eclético no que eu considero ser eclético no pior sentido da palavra. Mas o errado sou eu.

Mas vivia lendo e ouvindo música e, mesmo aposentado, continuava a trabalhar: era presidente da associação dos aposentados dos correios – BA. Era “telegrafista” de profissão. E eu hoje estudo e me dedico aos “telegrafistas atuais”, ou seja todos nós que usamos o telégrafo dos nossos tempos, a internet. Oh acaso!

Há uma semana recebi um pacote de cartas que estava sumido com missivas da minha mãe, do meu pai e de alguns poucos amigos (sempre tive poucos amigos e me considero cada vez mais isolado. E mais uma vez, por acaso, meu pai era assim também, vivia só, com seus livros e suas músicas, poucos amigos, alguns colegas e muita, muita gente que o adorava quando em público – festas de família em geral). Ele ficou em cima da minha mesa. Esqueci.

Fiz uma viagem bem estranha na segunda e voltei na terça. Na segunda de manhã fiquei, como estava fazendo já há meses, de manhã com ele no hospital e a tarde fui ao Rio para dar um entrevista. Quando cheguei no aeroporto a ficha caiu e me perguntei o que estava mesmo fazendo: por que iria ao Rio dar uma entrevista e voltar no outro dia. O programa é importante mas nada que justificasse o meu deslocamento nesse momento. Entrei no avião e fui jogado aos ares para cair no centro da cidade. Um amigo de longa data estava na cidade e não fui vê-lo. Preferi andar pelo Catete e pelo Largo do Machado e só então percebi que estava ali como o meu pai, revendo para ele os lugares que ele marcou com seus passos na década de 70 e 80 e que não via há anos. Andei, como se fosse ele, recordando os lugares onde havia vivido. E aqui ele foi muito feliz. Ele adorava o Rio de Janeiro, como a minha mãe também o adora. Voltei no outro dia para Salvador. A entrevista acabou cedo e pensei em passear mas, de súbito, fui tomado pelo ímpeto de ir ao aeroporto (eram 11 da manhã e meu vôo era as 16h) e trocar a passagem e voltar mais cedo. O vôo que tinha das 15h fora cancelado e fiquei escrevendo. Percebi mais uma vez, por acaso, que não estava ali para “passear” no Rio, mas para ter visto o que era para ser visto e voltar. Para ser os seus olhos nesses últimos momentos.

Na quarta de manhã as 5:45 recebo o aviso que meu pai havia falecido.

Sentei aqui agora com o intuito de registrar esse momento. Tudo na minha vida passa pelos meios eletrônicos, sou filho de telegrafista e engenheiro e não poderia ser diferente, mas iria ser breve, colocar a foto (acima) que fiz ontem no cemitério em um momento em que me afastei de todos e andei pelas tumbas sozinho, e colocar uma ou duas palavras.

Mas vem o acaso e vejo, na minha mesa, o pacote de cartas que havia esquecido. Há várias da minha mãe, duas de amigos e uma, sem envelope (todas as outras estão nos envelopes originais), como um bilhete deixado pra mim, dobrado, com o meu nome no verso. Pela letra identifiquei que era dele. Quando recebi o pacote me foi dito que eram cartas da minha mãe e de dois amigos. Abri e depois de ler rapidamente fui checar a data (não sei se existem coisas mais tocantes e emocionantes do que cartas – uma emoção, dor e sentimentos que em nada se comparam a ouvir um gravação sonora, ver uma foto, ou vídeos das pessoas amadas).

Tomei um enorme susto ao ver o dia 23/II/93. Em um primeiro momento parecia 23 de fevereiro (o dia de ontem, de sua morte) mas depois, olhando com calma achei que era 23 de novembro. Depois, decifrando os números percebi que era um 23/IX/93. Setembro! 23 de setembro. Oh acaso! Não era do dia de sua morte, mas era do dia do seu primeiro internamento (exatos cinco meses antes da morte), quando ele deitou e não mais teve forças para se levantar. Ficou assim até ontem!

Na carta ele diz que me enviou em anexo as fotos que tinha me prometido (mas elas não estão aqui), fala da corrupção no Brasil, da inflação de 35% ao mês. Feliz, me diz que fomos classificados para a Copa de 1994, que ganharíamos em seguida nos EUA. Um dos poucos telefonemas que recebi dele quando estava na França foi no dia que o Brasil ganhou o tetra: ele me ligou e chorando disse: “que saudade, quando o Brasil ganhou em 1970 estávamos juntos no Rio e você tinha 8 anos”. Emocionado dizia que éramos campeões e que queria que estivéssemos juntos. Sempre assistíamos os jogos das copas juntos, todas. Escreve sobre os ajustes na casa do sítio, o sítio que chamamos de ‘Lost”, já que sempre inacabado, que queria ter um neto e que a saúde estava compatível com sua idade. Antes do dia 23/IX/2010, ele nunca tinha entrado em um hospital, a não ser para tratar de uma queimadura em acidente de carro. Diz que foi “legal” a decisão de viajarmos pela França nas férias entre outras coisas do dia a dia.

O tempo, o espaço e o acaso são mesmo implacáveis e imponderáveis. Acho que deveria ter ficado mais junto a ele. Ficamos muito quando eu tinha dos 13 aos 17 anos. Viajávamos de carro entre Rio e Bahia e pelo interior da Bahia e outros estados próximos. Sempre que ia fazer algum trabalho viajando, me chamava e eu ia, feliz da vida com o meu pai! Era o meu companheiro e eu o dele. Depois, namoradas, faculdade, e viagens para mestrado no Rio, depois o doutorado na França e as outras que se seguiram me afastaram fisicamente dele. Sinto por isso. Poderia ter estado mais próximo, ter ajudado mais, ter sido mais companheiro, mas tenho meus limites e problemas.

No entanto, apesar dos tempos e espaços diferentes, sempre estivemos muito juntos. Um amor incondicional, uma admiração recíproca. Acho que essa é mesmo a palavra que fica: admiração! Um homem honesto, alegre, afetivo, carinhoso, amoroso, independente (nunca nos deu trabalho, nunca nos pediu nada e sempre deu, deu, deu…) visceral, ingênuo…um homem bom! Em alguns momento fui ríspido com ele e ele também (a relação com minha mãe não era boa e eu não aceitava isso!), mas sempre foi muito amoroso, carinhoso, uma pai maravilhoso para mim e para as minha duas irmãs.

No seu túmulo ontem ficou escrito (escolhi essa frase pois ele lia muito Allan Kardec – uma vez fui no Pere Lachaise em Paris, a seu pedido, “roubar” um flor do túmulo de Kardec. Roubei e trouxe para o Brasil para ele. Ele a guardou por muitos anos e ficou muito feliz):

“Nascer, Morrer, Renascer ainda e Progredir sem cessar, tal é a Lei.”

Não sei se acredito. Mas nesse momento acredito em tudo. Espero que isso seja verdade, que ele renasça e progrida e, se o acaso permitir, que possamos nos encontrar de novo! Viajarei no tempo com o pensamento, mas adoraria que isso fosse mesmo um “até breve”.

Na carta ele escreveu:

“…a foto que veio é muito bonita (…) faz a gente viajar no tempo com o pensamento”.

“Te amo. Um forte abraço. Até breve. Seu pai.”

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