Merry Miser

Tive a honra de participar, com um capítulo, do livro Vigilância e Visibilidade organizado por Fernanda Bruno, Marta Kanashiro e Rodrigo Firmino. No meu artigo, trato da vigilância, controle e monitoramento em jogo com as tecnologias móveis e de geolocalização (as chamadas mídias locativas). No texto, disponível aqui, afirmo:

“(…) A mobilidade por redes ubíquas implica maior liberdade informacional pelo espaço urbano mas, também, uma maior exposição a formas (sutis e invisíveis) de controle, monitoramento e vigilância. Segundo Gow (2005), ‘the essential qualities of the ubiquitous network society vision are invisibility and pervasiveness’. Invisibilidade e penetração em todas as coisas têm sido o tema dos debates contemporâneos sobre as mídias locativas e a ‘internet das coisas’. Emergem aqui sérias ameaças à privacidade e ao anonimato.(…)”

Mery Miser

O projeto Merry Miser enquadra-se muito bem nesse estado de vigilância, controle e monitoramento difuso, sutil, locativo e móvel (sociedade de controle, Deleuze) a que me refiro no texto. O objetivo do projeto é conhecer o perfil de consumo, de gastos financeiros e de expectativas de compra do usuário e sugerir, com base nessa memória arquivada, ganhos efetivos, a melhor hora de comprar e, consequentemente, a de não comprar. O objetivo não é fazer o usuário comprar mais mas, através de um monitoramento do seu histórico e da sua satisfação de compras passadas (financial watchdog), inibir compras impulsivas. Tudo isso tendo como base o monitoramento de sua posição via GPS.

“Merry Miser is a mobile application that helps its users to make better decisions about spending. The application uses the context provided by a user’s location and financial history to provide personalized interventions when the user is near an opportunity to spend. The interventions, which are motivated by prior research in positive psychology, persuasive technology and shopping psychology, consist of informational displays about context-relevant spending history, subjective assessments of past purchases, personal budgets, and savings goals.”

O aplicativo ainda é um protótipo. Há poucas explicações no site, mas pode-se ver mais detalhes na dissertação de mestrado de Charles DeTar, disponível aqui).
Vejam essa descrição na dissertação:

“This thesis describes the design, implementation, and evaluation of Merry Miser, a persuasive mobile phone application intended to help people to spend less and save more. The application was tested with four users over a period of four weeks. (…) Jim installs ‘Merry Miser’, a downloadable application, on his smart phone. The application downloads his bank statements and tracks his location, and presents him with interventions when he goes shopping. The interventions consist of useful tools to help him control his behavior, such as the ability to make contracts with himself. The application also prompts him to assess how happy he feels about the purchases he is making, and to think about how his perception on the value of a purchase changes over time. The application gives him a mechanism to set saving goals — Jim picks paying off his student loans and a vacation trip to Mexico. The application shows him a glanceable visualization of the current state of his accounts that makes it easy to see his progress towards these goals. In no time, Jim has started saving, and feels better about himself. He even has enough left over each month that he can give some to a local charity, for which the application rewards him.”

O objetivo de projeto é agir sobre a “felicidade do consumidor”. Não é à toa que na epígrafe do site do projeto seja: “Happiness is a way station between too little and too much. (Channing Pollock).” O objetivo do projeto se colocar contra a tendência dos sistemas comerciais locativos que atuam como “marketing”, manipulando o desejo de compra dos usuários. Ele é assim, “bem intencionado”.

“Merry Miser tries to work against this trend by providing contextual information that can help users to track their finances, maintain budgets, and track how past purchases have made them feel. It relates users expectations on how good a purchase is going to be to how good it actually ends up being, helping users to educate themselves about their own assessments. It promotes long-term, rational thinking in the face of marketers’ manipulation.”

Flowtown

As questões da privacidade e do anonimato são centrais desde a constituição da cibercultura no fim dos anos 1970: desde os primeiros “newsgroups”(anônimos e abertos), passando pelas denúncias dos primeiros hackers na década de 1980 contra a falta de segurança das redes telemáticas e/ou controle corporativo dos dados (veja o meu livro Cibercultura para mais detalhes). Hoje, as ações de mídias sociais como o Facebook, das mídias locativas (como as etiquetas RFID em presos, passaportes ou carros), ou leis de rastreamento de acesso e de conexão dos usuários, fazem com que a questão esteja na ordem do dia. Se ainda não há ganhos (proteções efetivas contra a ação de governos ou empresas no controle dos dados pessoais) no Brasil ou no mundo, a questão está em discussão.

Vejam, por exemplo, a pesquisa feita pela Flowtown (via @digital_cultura no Twitter) afirmando que os usuários estão mais preocupados com suas informações pessoais (71% dos usuários pesquisados em 2009 mudaram seus perfis para restringir o acesso a informações pessoais). No entanto, na pergunta sobre quem se preocupa com as informações pessoais disponíveis online, o índice diminuiu em relação a 2006, e em todas as faixas etárias. A pesquisa (bom, apenas mais uma pesquisa e deve ser vista como tal) afirma que:

“contrary to the popular perception that younger users embrace a laissez-faire attitude about their online reputation, young adults are often more vigilant than older adults when it comes to managing their online identities.”

Conclusão

A questão é de suma importância: política, cultural, econômica, envolvendo interesses bem diversos, com forças também bem distintas. Seja sistemas como o “Merry Miser”, que quer te “ajudar” a ser mais feliz nas suas compras, seja no Facebook, que quer te ajudar a encontrar e ficar em contato com seus amigos, seja no apontamento do lugar onde você se encontra pelo Twitter ou Foursquare, para criar formas de escrita urbana e de ativação de contatos quotidianos, o que está em jogo é o oferecimento de dados pessoais gerenciados por empresas e vendidos como banco de dados à outras empresas, sob olhar guloso de governos e de serviços de polícia.

Negociar a privacidade faz parte do dia a dia, revelar coisas sobre a vida privada é uma forma de se aproximar de outros, de reforçar laços sociais, afetivos. O afeto pressupõe revelação. A diferença hoje é que essa “revelação” se dá cada vez mais em “redes e mídias sociais” que estão nas mãos de grandes sistemas corporativos. Aqui, as “revelações” são guardadas para sempre (para fins os mais diversos), podendo hoje ser aquilo que te conecta a outro e te deixa “feliz”, mas que, em um futuro próximo, poderá se transformar no seu inferno, naquilo que te aprisionará e te isolará dos outros.

Não dominamos mais a destruição da memória (bom, nunca dominamos mesmo, mas também ela não estava nas mãos de outros, registrada para sempre). O esquecimento que antes, sem rastro ou com apenas alguns rastros deixados com acesso para poucos – os envolvidos -, estava garantido pelo tempo que passa, não está mais. O problema da vigilância, do controle e do monitoramento de dados está na negociação dessa memória que nunca se apaga e que circula sem o devido controle dos envolvidos. O problema está no registro (e na performances) desses dados integrados mundialmente que não deixam nada escapar. O tempo não apaga mais nada, nada é levado pelo tempo. É como se nas redes, nos bancos de dados, o tempo não passasse nunca, e a possibilidade do desaparecimento fosse deixada apenas para a ficção-científica.