Lei de crimes virtuais cria “sociedade do medo” na Web, diz professor:
Dei uma entrevista hoje por e-mail à jornalista Lilian Ferreira do UOL Tecnologia sobre a nossa petição e o impacto do projeto aprovado ontem pelo Senado Federal. Há depoimentos também do Ronaldo Lemos, da FGV, advogado especialista nessas questões. A matéria abaixo está no UOL tecnologia. No final da mesma, incluo a íntegra da entrevista por e-mail, com partes não publicadas.
Do UOL Tecnologia:
“O projeto de lei aprovado ontem no Senado prevê que provedores de Internet sejam obrigados a preservar por três anos os registros de acesso para que se possa saber quem acessou a Internet, em que horário e a partir de que endereço. Os provedores devem guardar em seu poder, para futuro exame, arquivos requisitados pela Justiça. Eles devem também encaminhar às autoridades denúncias de crimes que lhes forem feitas.
Do modo como é proposta a lei, cria-se uma “sociedade do medo”, na opinião de André Lemos, professor da Faculdade de Comunicação da UFBA e um dos idealizadores da petição contra a lei. “O pior do medo é aquele que se constrói por dentro, disseminado socialmente, invisível e, pior, em segredo [já que o provedor é obrigado a informar em sigilo]”.
“Assim, o papel do provedor passa a ser de vigiar, controlar e delatar. O juízo passa a ser dos provedores”, explica André. Para o advogado Ronaldo Lemos, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV (Fundação Getúlio Vargas) do Rio de Janeiro, a lei diz que os provedores devem informar de maneira sigilosa indícios de práticas de crimes, mas que isso contraria a constituição.
“A lei cria um denuncismo. Eu posso denunciar um amigo, a indústria pode denunciar usuários e o provedor deve passar isso para a polícia. Por que o provedor tem de ficar no meio do processo?”, questiona.
Ronaldo destaca ainda que a lei provoca uma criminalização em massa. “Quando muitos são criminosos, pega-se ‘bode expiatórios’ para dar exemplo e punir. E as razões não serão criminais, mas sim políticas”.
Segundo André, por não querer atividades “ilegais” no seu sistema, o provedor pode quebrar a neutralidade da rede e impedir que o internauta acesse um determinado site. “Isso está acontecendo agora no Canadá, onde a Bell está restringindo a velocidade de acesso a alguns sites. Imagine o que representa para a Internet os provedores (baseados em excesso de uso da rede, como esta alegando a Bell no Canadá, publicidade e marketing, atividades consideradas ilegais) não permitirem o acesso a sites?”.
Para Ronaldo, o provedor acaba trabalhando como paladino, rompendo a privacidade e dizendo onde o internauta pode navegar. Com pedido judicial, ele deverá gravar conversas do Skype, MSN e imagens de webcam, conta.
Debate público
Os especialistas ainda afirmam que houve pouco debate público sobre o tema. “Nunca vi tanta pressa para aprovar um projeto de lei. Em nove dias foi aprovado no Senado. Isso é medo da reação popular”, diz o advogado.
A petição online contra a lei está recebendo cerca de 200 assinaturas por hora. André diz que a intenção da petição é chamar a atenção para a dimensão colaborativa da Internet. “Por trás de uma luta contra esses crimes, está um projeto que visa colocar um instrumento de vigilância e controle fora do poder legal do Estado (nas mãos dos provedores), e transformar o mais comum dos internautas em potencial criminoso”, explica.”
ENTREVISTA NA ÍNTEGRA POR E-MAIL
Quais são as conseqüências da lei na prática? O que muda para o usuário comum?
Para os criminosos, não muito, já que há leis para esses crimes, e eles estão soltos por aí. Para o cidadão comum, o sentimento de ser vigiado e de não saber se o ele que faz é legal ou não. Por exemplo, se eu disseminar um vírus sem saber, poderei ser preso? posso trocar arquivos entre meus pares mesmo em redes P2P (minhas fotos, minhas músicas, meus arquivos de textos) sem pedir autorização prévia? Como os provedores vão interpretar essas trocas? Posso copiar uma parte do texto de um blog e colar no meu? Ou seja, ela cria um sentimento de insegurança e de medo generalizado. Isso bloqueia a imaginação e a criatividade.
Qual será o papel dos provedores caso a lei seja aprovada? Provedores de Internet terão que agir como polícia: vigiando e delatando? Qual o problema disso?
Vigiar, controlar e delatar. O problema é deixar o juízo, e em segredo, para os provedores. Mais ainda, por não querer atividades “ilegais” no seu sistema, o provedor pode quebrar a neutralidade da rede e impedir que o internauta acesse um determinado site. Isso está acontecendo agora, aqui no Canada, onde a Bell está restringindo a velocidade de acesso a alguns sites. Há protestos aqui contra isso onde muitos defendem ser uma prática ilegal. O provedor não pode dizer por onde o internauta deve ou não navegar. Imaginem o que representaria para a Internet termos sites que os provedores (baseados em que mesmo?, excesso de uso da rede, como esta alegando a Bell no Canadá? publicidade e marketing?, atividades consideradas ilegais?) não permitiriam o acesso, ou apenas o acesso a velocidades reduzidas, o que dá no mesmo.
O substitutivo do Senador Eduardo Azeredo quer bloquear o uso de redes P2P? Por quê? O que diz o projeto? Os provedores devem bloquear o P2P caso a lei seja aprovada?
Como expliquei acima, isso pode acontecer, já que se é considerado ilegal a troca de arquivos. Mas nem toda troca de arquivo é troca de arquivos ilegais. Acho que essa lei é um atalho para a quebra da neutralidade da rede no Brasil, ao impedir acesso a esses e outros sites julgados (pelo provedor?) suspeitos.
A reprodução de material também será criminalizada (por causa do artigo que exige autorização prévia para reprodução de conteúdo)? E os blogs, como sobreviveriam?
Ao meu ver, na ilegalidade, já que é prática corrente trocar informações, citar e copiar partes de um conteúdo. Como falamos no manifesto, não se trata da defesa do roubo ou plágio, mas de uso criativo e cumulativo do conhecimento. Essa é uma prática (criativa, mobilizadora, enriquecedora) na blogosfera brasileira. Mas a lei exige que o usuário tenha um autorização antes de usar. Isso iria, como falamos no manifesto, bloquear os diversos usos da internet e tornar mais lenta, senão impossível, a troca de informações, os comentários, a discordância, em suma, o debate público.
Não entra na discussão a questão público-privado? Um material colocado na Internet não se torna público e de livre reprodução? E a vistoria de troca de dados entre dois usuários não invade sua privacidade?
Não. Ele é publico mas para reproduzí-lo precisamos pedi autorização. Todo o debate em torno do copyright situa-se aí, no seu anacronismo. O Creative Commons atua justamente nesse sentido. Dizendo: “pode copiar que eu já autorizei”. Mas nem todos os sites tem esse regime, mesmo que o dono não se incomode com a copia justa e séria (citar a fonte, dar créditos). Teríamos, nesse caso que, a cada citação, que esperar uma autorização antes de publicar. Ou seja, não citaríamos mais, não reproduziríamos o conhecimento e bloquearíamos a difusão cultural. Por exemplo, essa entrevista, estando publicada, para que eu possa colar ela no meu blog (já que sou eu falando), precisarei pedir autorização ao UOL. Isso já está claro na política de sites e portais.
Entrar em um site e os buscadores também estarão cometendo crimes por armazenar dados sem autorização?
Sim. Se o Google copia trechos do meu blog quando alguém procura por ele, e o Google não me pediu permissão, ele não estaria violando a lei?
Estaríamos entrando em uma sociedade do medo? É a idéia do vigiar e punir de Foucault? Adestrar e colocar o medo em vez de educar?
Sem dúvida. O pior do medo é aquele que se constrói por dentro, disseminado socialmente, invisivel e, pior, em segredo (já que o provedor é obrigado a informar “em sigilo”). Isso trava a cooperação, o desenvolvimento livre no mercado das idéias, a difusão do conhecimento, como insistimos no nosso manifesto.
Se uma pessoa filma uma palestra, por exemplo, quem é o legítimo titular da obra? O palestrante ou quem filmou? Eles devem dar autorização a cada vez q seu material é reproduzido?
O palestrante deve assinar um documento que autoriza o uso de sua imagem. Não sou advogado, mas acho que depende do tipo de contrato assinado.
Os crimes de pedofilia, pirataria e roubo de dados pela Internet não precisam de leis que os tipifiquem? Qual a melhor solução?
Mais uma vez, não sou advogado, mas vários se manifestaram afirmando que esses crimes já estão previstos no código penal. Se ha evidência, o MP pode entrar com um pedido legal e requerer dados. Na atual lei, o Servidor vai monitorar os usuários e fornecer informações pessoais sem pedido judicial. Isso violaria a Constituição ao armazenar dados pessoais.
O que vocês pretendem com a petição?
Chamar a atenção para a dimensão colaborativa da internet. Ela deve ser vista como uma estrutura que permite a distribuição do conhecimento e o enriquecimento cultural. Obviamente que ninguém é a favor de crimes como pedofilia, trafico de drogas, roubo de senhas e ataques a contas bancárias. Mas o carro chefe do “crime”, que é o apelo dessa lei, pode levar de roldão a criatividade e a liberdade de produção e compartilhamento da informação que fazem a riqueza da internet. Por trás de uma luta contra esses crimes, está um projeto que visa colocar um instrumento de vigilância e controle fora do poder legal do Estado (nas mãos dos provedores), e transformar o mais comum dos internautas em potencial criminoso. Essa lei pode reprimir, a curto, médio e longo prazos, a criação de redes sociais e a livre circulação de informação e do conhecimento. Travaríamos assim o desenvolvimento da cultura da informação no Brasil, pilar estratégico para a sociedade da informação do século XXI.