No fim de semana participei da Festa Literária do Recôncavo em Cachoeira, Bahia. O evento foi bem interessante e acho que a escolha da cidade foi muito feliz. Fiz a curadoria da mesa “O Fetiche do livro em papel e o meio digital” que contou com as ilustres presenças de Bob Stein e Fábio Fernades. Há um interessante resumo das discussões aqui.
Deixo abaixo, como registro, os meus pontos de destaque, que de forma nenhuma resumem a rica discussão que se travou na mesa, nem expressa concordância dos meus colegas:
1. O livro é um dispositivo sempre em transformação. O livro é desde sempre uma mídia móvel. Ler e escrever é o que importa no fundo. Dispositivo eletrônico é “BIBLIO” (ver Derrida, “Papel Máquina”), um espaço/lugar de armazenamento de informação, de livros e que é também o próprio livro.
2. O leitor é editor e distribuidor. Nova forma de leitura onde a ação de edição e compartilhamento pode ser feita pelo leitor. Cresce formas e instrumentos de uma cultura letrada que se faz por uma leitura sociabilizada. O leitor é também “tipógrafo” (“Desafios da Escrita” de R. Chartier) que pode mexer nas fontes e alterar as localizações das informações. Só há textos e leitores móveis.
3. A fixação da página não é original. A literatura digital coloca em questão a noção de página (dos impressos) e pode se libertar da amarra de um suposto original fixo, mais valorizado do que seria a “cópia” eletrônica. Não será isso, no fundo, o que está pairando na discussão sobre os livros em papel e os digitais e na resistência em relação a esses últimos? Não seria mesmo a nostalgia do papel que seria o original que fixa para sempre a informação em suas páginas? Toda produção (não só da obra de arte) deve ser vista como “trajetória”, o original como a “origem” e a cópia, como aquilo que advém do que é “copioso”, farto (Latour). A edição em papel é sempre uma cópia. Assim como o é a edição eletrônica. No caso do impresso, a localização pelo número da página (essa ilusão de fixação) é sempre provisória pois das duas uma: ou a obra continuará (e será reproduzida, desarrumando as informações, mudando as páginas), ou será esquecida, ficará sem linhagem e trajetória, e desaparecerá. Aprendemos a pensar na fixação da página impressa como “confiável” e “original”, de onde emana a “aura”, e a pensar na reprodução (qualquer uma, mas a digital mais recentemente) como inferior, como denegrindo a imagem do original, como a destruição dessa aura pela reprodutibilidade (a opção Benjamin). Seria mais interessante falar de uma localização fluida e que depende do leitor (aquele que lê e o dispositivo utilizado) do que forçar os leitores a se fixarem na estrutura das páginas de uma edição impressa (também fluida de fato, mas com aparência de estática).
4. O Livro é objeto sensual. Sempre que uma mídia desenvolve uma relação sensual (corporal), o abandono do dispositivo será penível e difícil. Vejam o cinema. O DVD não substitui o cinema pois a relação com o “espaço” cinema é sensual, impossível de ser substituída pela sala da casa. O mesmo acontece com o livro. Nossa relação com o códex é sensual: manuseio das páginas, peso, cheiro do papel, exibição nas estantes…O mesmo não acontece com a música. Não temos a nostalgia da fita cassete e, tirando alguns puristas, ninguém fica triste em substituir o vinil pelo CD. Ouvir música é uma experiência que pressupõe um tempo e um lugar específicos, mas não uma relação sensual com a mídia. Acho que o livro em papel nunca será substituído justamente pelo caráter sensual de sua materialidade. Acho que ele será cada vez mais um objeto especial, feito em papel para momentos especiais.
5. As livrarias vão mudar e já estão mudando. Primeiro elas eram lugares de sociabilidade de leitura, de informação e de discussão com livreiros e vendedores que, ou eram editores, ou escritores ou, na sua maioria, leitores vorazes. Hoje estamos na era das megastores que sobrevivem pelo estilo supermercado-café-da-moda. Acho que, no futuro, como os livros que são em papel apenas por ser o meio convencional de veicular uma história estão em vias de se tornarem minoritários (os livros para os quais o papel seria o suporte especial continuaram a serem produzidos – fotografia, arte etc.), essas livrarias serão cada vez mais lojas de eletrônicos e, talvez, as pequenas livrarias voltarão à cena para acolher aqueles que querem as edições antigas em papel, encontrar leitores, editores e escritores etc. O futuro mais uma vez se aproximará do passado?
6. O sucesso do livro eletrônico está na materialidade do dispositivo e na emulação do passado. O novo é o velho! As análises sobre as novas mídias centraram-se nas diferenças, na morte dos antigos formatos e na superação da experiência analógica com o surgimento do digital e das redes telemáticas. O que estamos vendo é um retorno a experiências anteriores, com o aproveitamento das inovações sociais e tecnológicas do digital, principalmente no que se refere às possibilidades de produção de conteúdo, de compartilhamento de informação e de criação de redes sociais. Os e-readers emulam, com a e-ink, muito bem o papel e a tinta. Alguns não tem iluminação interna e tornam-se muito confortáveis para a leitura. O que está em jogo aqui é usar a tecnologia digital e as redes sem fio para proporcionar portabilidade da biblioteca e uma leitura próxima da do livro impresso (sem firulas, links desnecessários, ou interatividade exagerada). O leitor nem sempre quer ser “interator”. Ele quer ler como se lê um livro em papel. A relação material é importante aqui: ler um produto acabado em uma postura corporal similar àquela da leitura dos livros jornais e revistas impressas. Não estou dizendo que os antigos formatos desaparecerão (isso pode até acontecer), nem que seja a mesma coisa (não é, já que posso criar redes sociais, compartilhar informações de leitura – nos ereaders e tablets pode-se twitar trechos do que se lê, algo impossível com a leitura do impresso etc.). Sustento que agora (a digitalização da escrita e dos livros começa nos anos 1980-90) os e-books estão tendo um grande sucesso (a Amazon vende mais e-book que livros impresso, e a venda de e-readers e tablets é muito grande hoje) por emularem as materialidades das mídias analógicas. Afinal, não é por acaso séculos de sucesso desses formatos midiáticos.
7. As principais mudanças são 3: dispositivo, leitura e escrita: Na materialidade do dispositivo livro, na forma de leitura, que sempre é uma apropriação e invenção de sentidos, e nas novas possibilidades de escrita, nos novos formatos e estilos que surgem com os hipertextos, os blogs, o twitter etc. Há novos escritores e leitores que ainda não são reconhecidos como tais. O fetiche do papel migra para o fetiche do dispositivo. Mas de uma forma ou de outra, o importante é que se está ampliando as formas de leitura e de escrita. Agora, leitores e escritores tornam-se figuras maleáveis, mais híbridas, que navegam pela experiência do impresso e por suas amplas possibilidades semânticas, que passam a escrever em meio digital e ler de outra maneira, podendo, de forma mais ampla e mundial, alterar a edição e criar redes de sociabilidade na leitura. As experiências parecem ir para o futuro, mas o que vemos é, na realidade, rearranjos do passado no presente, inovações do presente emulando o passado. O futuro está mesmo aberto.