“VAR is bullshit”!
A verdade sobre um evento nunca é um output indiscutível. O que é gerado em um dispositivo (arranjo performativo de um conjunto de elementos em determinada situação) é sempre construção e deve, portanto, ser sujeito de discussão. Muitas vezes delegamos a objetos técnicos a produção da verdade, obscurecendo a rede (conjunto complexo de agentes em ação) que os constitui. Algo similar aconteceu com o uso do VAR na recente Copa do Mundo da Rússia.
O Video Assistant Referee (VAR), “Árbitro Assistente de Vídeo”, foi experimentado pela primeira vez nesse tipo de evento. O sistema funciona com 35 câmeras e 8 auxiliares humanos (4 operadores que escolhem as imagens, o VAR e 3 auxiliares). Há ainda um representante da FIFA que decide sobre a publicização das imagens. A parafernália do sistema está estruturada em um ambiente similar a um Centro de Comando e Controle (CCC), como os de vigilância urbana que foram implementados no país na Copa do Mundo do Brasil em 2014. O VAR só deve ser utilizado em 4 situações: gol, pênalti, expulsão, ou problemas de identificação de jogadores. A comunicação com o árbitro é por áudio e este deve sinalizar com os braços (desenhando no ar uma tela), avisando ao público que vai consultar o sistema.
Como todo dispositivo panóptico, o VAR é um mecanismo disciplinador, no caso, de jogadores e árbitros. Ele institui uma nova pressão sobre esses últimos, já que não utilizá-lo pode ser interpretado como má-fé ou incompetência. Com ele, haveria a redução dos equívocos pela neutralidade técnica das imagens. “Seu juiz, vai olhar (sic) o árbitro de vídeo” clamava revoltado o narrador Galvão Bueno da Rede Globo no primeiro jogo do Brasil. “VAR is bullshit!”, gritava para as câmeras o jogador Ambarat do Marrocos, após empate com a Espanha (que teve um gol validado pelo sistema).
Antes do VAR, o juiz se posicionava sobre um evento com o auxílio dos bandeirinhas, dos árbitros de linha e do quarto árbitro. Esse dispositivo de produção da verdade era centralizado na visualidade humana sem interferências técnicas significativas. Com o VAR, diferentemente, a decisão surge de uma rápida conferência entre árbitros instruídos por imagens técnicas de dezenas de câmeras estrategicamente posicionadas.
Mas esta não é a única novidade tecnológica estreando em uma Copa do Mundo. Há ainda o Goal Line Technology (GLT), ou “Tecnologia da Linha de Gol”. Ele foi pensado após um erro grosseiro em 2010 no jogo Inglaterra e Alemanha e testado pela primeira vez no Japão em 2012. Nesse caso, constrói-se um aparato técnico sem interferência humana direta que atua para afirmar ou não o gol: câmeras estrategicamente posicionadas, campo magnético nas traves, sensor na bola, softwares de gerenciamento da informação e comunicação sem fio com o relógio de pulso do juiz.
Diferentemente do VAR, cujo regime de visibilidade é tecnicamente ampliado, mantendo-se a interpretação humana, o GLT valida autonomamente o evento pela performatividade técnica, mesmo que o juiz nada veja, mostrando a bola aquém ou além da linha do gol, sendo o resultado um output do sistema, sem interferência humana direta. O árbitro, nesse caso, é apenas um elemento finalizador do processo, apontando ou não o gol a partir da vibração (ou ausência dela) do seu relógio.
Pode-se questionar tecnicamente a eficiência do sistema, mas isso se faz em outro lugar e com outros debatedores (engenheiros). Não houve, durante a Copa, nenhuma controvérsia sobre o seu uso. Passamos, portanto, de um regime de produção de verdade visual e interpretativo centrado no humano (sem VAR), para um composto por dois tipos de dispositivos: um visual interpretativo com interferência direta de imagens técnicas (o VAR), e outro sem interferência humana interpretativa, delegando a decisão ao processamento informacional (GLT).
O VAR tende a ampliar o debate, tornando mais consensual as interpretações. O GLT delega a olhos técnicos mais precisos a definição do momento máximo do futebol (como em jogos de volei ou tênis). Mas, certamente, VAR e GLT não são neutros e o output é sempre devedor da rede que age nesses dispositivos. Achar que o VAR/GLT produziriam a verdade por serem regimes técnicos denota purificação e má compreensão dos imbricamentos agenciais em ação.
Torcedores, jornalistas, dirigentes e jogadores reivindicam, ou criticam, essa nova “era tecnológica” do futebol tendo por base essa crença. Por um lado, essas novas tecnologias devem ser usadas por revelar a verdade límpida do evento, retirando o olho humano, no caso do GLT, ou tornando, no caso do VAR, ainda mais questionáveis as interpretações do árbitro. Por outro, elas devem ser banidas justamente por perturbar a essência do jogo, eliminando os erros e diminuindo a influência do humano no sistema.
Esse fenômeno de crença na neutralidade dos dispositivos técnicos é similar ao que acontece com outros sistemas de vigilância e de controle contemporâneos: câmeras de vigilância urbana (com a crença de que tudo será visto e esclarecido), ferramentas de Big Data (instituindo uma leitura mais fidedigna do mundo), mineração de dados em redes sociais (revelando o estado atual da sociedade) etc. Esquecer o bias do dispositivo é aliar tecnodeterminismo e neutralidade, tendo como central a convicção de que o erro pode ser extirpado por uma visualidade técnica, ou pelo processamento informacional ampliados.
A questão não é criticar a verdade por ela estar sendo construída, já que não há outra opção. A única ação possível é a discussão sobre suas formas de instauração. Diferentes dispositivos produzem regimes de veracidade com trajetórias específicas. A verdade é sempre a estabilização de uma controvérsia, por vezes temporária, levando em conta as redes que compõem os seus artefatos de instauração. Os dispositivos VAR/GLT não são neutros, mas também não são, por isso, menos verdadeiros.
André Lemos é Professor Titular da Faculdade de Comunicação da UFBA, Pesquisador do 1 A do CNPq, coordenador do Laboratório de Pesquisa em Mídia Digital, Redes e Espaço (Lab404), PPGCOM-FACOM/UFBA – http://lab404.ufba.br