Meeting Place
Marcas no chão
Depois de três dias em Toronto, o que mais me chamou a atenção foram as diversas e constantes marcas no chão. Andando, e só assim é possível vê-las, não pude evitar de olhá-las e tentar compreender essa escritas urbanas. A cidade é riscada por graffitis, tags, cartazes, stickers, painéis publicitários, sinais de trânsito, avisos de controle do território reforçando as leis e regulamentos (“essa área está sendo vigiada por câmeras de vigilância”, “proibido ficar aqui”, “proibido flanar”, “proibido vendedores ambulantes”, etc.). Mas isso é comum nas grandes metrópoles. No entanto, o que atraia mesmo o meu olhar eram essas marcas sob os meus pés, esses riscos pedindo para serem lidos, embora eu não tivesse, nem tenha ainda, a pedra de Rosetta para decifrar esses modernos hieroglifos. Claro que elas são marcas para tornar mais eficiente o uso, a manutenção e a inovação das infraestruturas urbanas (como água, esgoto, redes de cabos de telecomunicações, vapor, eletricidade). Marcas visíveis das artérias desse grande artefato técnico que são as cidade.
Marcas no chão
O meu sentimento era de estar andando sobre um mapa, um mapa na escala 1×1, onde a superfície da cidade é, ao mesmo tempo, o território e o suporte de inscrições, de informações: um mapa. Como no “Del rigor de la Ciencia” de Borges, o mapa aqui confunde-se com o território. Essas marcas no chão, diferente do uso tático dos graffitis nos muros e dos stickers em postes ou telefones públicos, ou mesmo do uso comercial dos painéis publicitários disseminados em alguns pontos da cidade, são índices visíveis de usos estratégicos, performáticos, técnicos, para usar uma terminologia cara a Michel de Certeau. E essas marcas estratégicas, mais do que táticas ou publicitárias, passam despercebidas pelos habitantes da cidade. Várias pessoas me olhavam e dirigiam o olhar para o chão quando me viam fotografando, como se percebessem os traços pela primeira vez. O território concreto do espaço urbano é um verdadeiro palimpsesto: marcas novas, marcas apagadas, marcas sobre outras marcas, e em várias tonalidades – branca, verde, lilás, laranja, vermelha. Há marcas facilmente identificáveis como setas, nomes e números, e outras só reconhecíveis por olhos técnicos e treinados: letras e números compondo códigos ilegíveis, desenhos que mais parecem revelar a herança de alguma civilização desaparecida.
Marcas no chão
Nesse espaço urbano marcado por grande telões, câmeras de vigilância, redes wi-fi, painéis solares em parquímetros e postes de iluminação, as marcas no chão parecem anacrônicas, como os tramways que insistem em atravessar a cidade em seus trilhos que rasgam o asflato. Elas parecem afirmar que os fluxogramas e esquemas técnico dos engenheiros e planejadores urbanos não são suficientes na hora de rasgar o chão e mexer no corpo da metrópole. Volta-se assim à escrita analógica, se podemos dizer assim, do grafo que tatua o corpo da cidade. Sem dúvida, trata-se de uma mídia locativa, criando informação, veiculando mensagens indexadas a lugares e objetos urbanos, produzindo uma memória técnica, instituida em um suporte material bem preciso: o chão. Essas marcas são mídias de localização, criando transmissão e memória.
Outras marcas…painéis publicitários, placas de trânsito
Painel solar em esquina da Bloor Street
Comecei a escrever esse post na CN Tower (a torre mais alta do mundo, e o ponto de observação mais próximo do céu criado pelas mãos humanas: 447 metros acima do nível do mar) e termino esse escrito com os pés doento, sentando em um café no cruzamento da Carlton Street com Yonge Street, em Downtown, olhando os passantes pela janela. A mais de 400 metros do solo (e com a impressionate marca de 21 redes wi-fi disponíveis – abertas e fechadas, mas todas dando acesso mediante pagamento) pude perceber o tecido e as outras marcas da cidade, marcas muito mais visíveis do que as incrustradas a tinta no chão. Com uma vista de 360 graus, dá para ver toda a cidade, o lago Ontario, o porto, aeroporto, a estrada de ferro, os enormes prédios comerciais, os bairros a oeste com suas pequens casas, e até cidades vizinhas, como Redmont, em Ny, ou Niagara Fall, em Ontario. Uma visão exuberante.
Downtown Toronto
Pode-se ler, pela “arqui-tetura” (“arché-techné”, a técnica “fundamental”), as diversas formas de construção da espacialidade. Toronto era York em 1793, fundada por franceses e depois tomada por loyalistas ingleses. Em 1834, York passou a chamar-se Toronto, que significa em aborígine, “meeting place”. Hoje é a quinta cidade da América, multicultural e pulsante. Vemos grandes e imponentes prédios no centro, convertendo em altura o fluxo financeiro e o poder industrial, vemos o lago com o porto, a estacao férrea e o aeroporto, todos aglutinados, mostrando por onde comecou a cidade e como o lago estrutura esse grande hub com o mundo externo. Em downtown, prédios gigantescos perto do porto, da Station e do aeroporto, como se não quisessem se desprender da história e das trocas, como se quisessem, de alguma forma, continuar ligados à fluidez das águas do grande lago. A oeste, pequenos prédios e casas revelando a extensão da vida social, Chinatown, Little Italy… Dividindo os dois mundo, Yonge Street e a grande Avenida da Universidade, culminando com o Parlamento, ao norte, Universidade de Toronto, a oeste. Algumas indústrias, a leste, são visíveis também perto do porto (para beber das águas do lago e escoar seus produtos).
Lago Ontario, aeroporto, porto…
Assim, a quase 500 metros do solo, não vemos mais as marcas de tinta no chão, mas uma macroescritura, construída e destuída ao longo dos séculos nessa tensa e dinâmica construção social do espaco. Aqui, do alto, posso ler essa escrita da paisagem onde o olho vê até onde ele alcança, diferente do olhar que busca os detalhes, como as marcas no chão. Embaixo o barulho, as sirenes, as pessoas, as pequenas marcas como detalhes irrisórios dessa grandiosidade que vislumbramos do alto. De cima, esses detalhes não são mais do que pequenos sinais, minúsculas tatuagens no corpo desse grande organismo, pequenas escritas estratégicas contracenando como traços nervosos, visíveis e invisíveis, da vida quotidiana.
Multiculturalismo a oeste
De uma forma ou de outra, o tecido urbano está sendo re-escrito, visível da torre e dos satélites, ou percebido discreta ou invisívelmente no olhar que busca o detalhe do chão. Essa construção social do espaço é construída coletiva ou individualmente com tinta, aço, concreto ou bits, com as diversas redes sociais, suas leis, seus movimentos e constrangimentos.
Marcas no chão
Ao descer, olho para todos os lados e sinto vertigens. Encaro, ao mesmo tempo, o que está na minha frente, para ver o que encontrarei no meu caminho. Olha também para o que está no alto, sentindo a pequenez e o estranhamento em meio à imponência e à força da metrópole (como sinto em NY ou São Paulo). E finalmente, volto a olhar para baixo, para o chão, para admirar, introspectivamente, mesmo sabendo que são forças racionais e da técnica, esses traços que parecem arte e me fazem, mesmo sendo uma ilusão, ver beleza e arte brotando do duro e quente asfalto.
Olhando para o alto
olá, venho sempre aqui, seja para me inspirar, informar, passear ou flanar. este post especialmente tocou todos estes pontos. grata por compartilhar conosco idéias e vivências tão frescas.
Obrigado Paoleb. Tenho queridos amigos na ECO. Ganho mais uma ;-))
abs, André